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Leonardo Sakamoto

Brasil "vendeu" barato proteção à indústria automobilística

Leonardo Sakamoto

16/09/2011 11h16

O governo federal anunciou, nesta quinta, o aumento de 30 pontos percentuais no Imposto para Produtos Industrializados (IPI) a veículos que não tenham um mínimo de 65% dos seus componentes fabricados no Brasil. A medida, que vai até dezembro de 2012, prevê também a necessidade de que as empresas que queiram se ver livres dessa sobretaxa possuam aqui a maioria das etapas de suas linhas de produção, como a fabricação de motores e a montagem dos chassis.

Sou a favor de defender a indústria nacional por várias razões – que excluem, claro, os argumentos patrióticos. Mas isso não significa que tenhamos que, no intuito de apoiar o desenvolvimento nacional, fechar os olhos para as besteiras feitas em nosso quintal. Ou ignorar que contrapartidas existem para serem exigidas.

Não vi entre as medidas exigidas do governo que as montadoras aqui instaladas não demitam trabalhadores durante a vigência desse bonus stage. Muito menos que fossem colocadas na mesa outros temas importantes, como a adaptação da frota nacional para um diesel com menos enxofre na sua composição e que, portanto, mataria menos os moradores das grandes cidades – ação que vem sendo postergada pela pressão de empresas de combustíveis e montadoras.

Ou um controle mais rígido sobre a cadeia produtiva dessas empresas. Hoje, ao comprar um carro, você não tem como saber se o aço ou o couro que entrou na fabricação do veículo foram obtidos através de mão-de-obra escrava e trabalho infantil ou se beneficiando de desmatamento ilegal. Por que? Porque essas empresas não rastreiam como deveriam os fornecedores de seus fornecedores, apesar das comprovações de ilegalidades apontadas pelo Ministério Publico Federal e pela sociedade civil. E nas suas cadeias produtivas, já apareceram nomes que constavam da lista de embargos do Ibama ou da "lista suja" do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego.

Introduzir a discussão de contrapartidas ambientais, sociais e trabalhistas nessas horas é difícil. Alguns "especialistas" repetem ad nauseam que é irracional a solicitação de contrapartidas à indústria, uma vez que o aumento nas vendas gira a economia e gera empregos. Afirmam que as empresas não podem operar esquecendo que estão inseridas em uma economia de mercado, buscando uma taxa de lucro média para continuar sendo viável. E que se problemas existem é pela falta de fiscalização do governo. Como se a causa do trabalho infantil, por exemplo, fosse só impunidade e não a ganância por ganhos rápidos e lucros fáceis no altar da competitividade.

Ou seja, o Estado tem que garantir e ajudar o funcionamento das empresas, mas as empresas não podem sofrer nenhuma forma de intervenção em seu negócio. Um liberalismo de brincadeirinha, de periferia do mundo, com um Estado atuante, mas subserviente ao poder econômico, em que o (nosso) dinheiro público deve entrar calado, sem perguntas.

O setor automobilístico lucrou muito nos últimos anos no país. O que, é claro, pode se traduzir em empregos, geração de renda, impostos e tudo o mais. Por isso, é interessante como diretores de federações de patrões e economistas ligados a empresas que defenderam a redução salarial com manutenção de jornada durante a crise se arrepiam até hoje quando sindicatos e alguns parlamentares pressionam pela diminuição de jornada de 44 para 40 horas semanais com manutenção salarial. Por que não introduzimos essa discussão agora, junto com o pacote do IPI?

O governo diz que essa política vai proteger os empregos por aqui. Mas a história mostra que as coisas não são tão simples assim. Até porque é exatamente nesses momentos que a indústria aproveita para fazer aquele ajuste tecnológico básico, tornando mais gente desnecessária.

E recordar é viver: durante o pico da crise econômica mundial, a General Motors demitiu 744 trabalhadores de sua fábrica em São José dos Campos (SP) sob a justificativa de "diminuição da atividade industrial". Mesmo após ter recebido apoio da União e do governo do Estado de São Paulo no sentido de facilitar a compra de seus produtos por consumidores. Vale destacar que o setor também é beneficiário de recursos oriundos de fundos públicos, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ou seja, pertencentes aos trabalhadores.

Por tudo isso, o governo tem a obrigação sim de exigir mais contrapartidas de quem vai ser beneficiado – porque o que aconteceu com as medidas desta quinta é exatamente isso: benefício de uns em detrimento de outros. E quando se age para proteger ou beneficiar um setor aqui instalado, esse setor deve garantir algo em troca que vai além de aumentar sua capacidade de produção.

Por fim, vale lembrar que a quase totalidade das indústrias de veículos aqui instaladas não são de origem brasileira. Até onde vai meu parco tupi, Volks, Ford, Renault, Toyota, entre outros, não são nomes nativos de Pindorama. Ou seja, os lucros obtidos são remetidos para fora, onde esses nomes fazem mais sentido que aqui. Se o governo pensar só com cabeça de planilha, vai continuar fazendo do Brasil um suporte para as empresas automobilísticas dos países do Centro durante épocas de crise, deixando o nosso meio ambiente e nossos trabalhadores pagarem a conta por isso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.