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Leonardo Sakamoto

Tá com dó? Leva pra casa!

Leonardo Sakamoto

04/01/2012 11h39

(A pedidos, segue um aviso: Cuidado! Texto com ironias. Leiam com atenção.)

Essa frase faz sucesso aqui no blog. Principalmente entre os leitores que usam seu Tico-e-Teco apenas no Natal para poder quebrar nozes e depois os mantém em animação suspensa sob temperatura de vinho branco. É proferida ad nauseam quando o tema é a dura barra enfrentada pela gente parda, fedida, drogada e prostituída que habita o Centro da pujante São Paulo – locomotiva da nação, vitrine do país, que não segue, mas é seguida e demais bobagens que floreiam discursos ufanistas patéticos caindo de velhos. É só falar da necessidade de políticas específicas que garantam qualidade de vida para esse pessoal mas, ao mesmo tempo, respeitem seu direito de ir e vir e ocupar o espaço público, que reacionários vociferando abobrinhas saem babando, querendo morder o blogueiro. Rrrrrrrrrr, au!

Afinal de contas, quem você pensa que é, jornalistazinho de merda metido a intelectual, que fundamenta seus orgasmos na estética da miséria, refestelando-se com situações-limite que colocam em risco nossa civilização, expondo as famílias de bem à escória do mundo e Zzzzzzzz… Ahn? Como? Ah, desculpe, cochilei… Enfim, tá com dó? Leva pra casa!

Fico pensando o que isso quer dizer exatamente. Como levar um dependente químico para casa vai ajudar na solução do problema?

Bem, se você é do tipo que acha bonito aquela parábola – deveras brega, diga-se de passagem – do sujeito que, diariamente, pega estrelas-do-mar e as joga na água, achando que está fazendo sua parte para salvar o mundo, meus parabéns. Mas vá fazer outra coisa, desencane de ler este texto e discutir política pública.

Para os demais, gostaria de lembrar que criticar uma política higienista serve para que o poder público respeite os direitos individuais e dê soluções reais aos problemas e não apenas espalhe-os para que sumam da vista dos mais endinheirados. Não é uma ação individual que vai resolver, mas uma mudança de paradigma: como tratamos os doentes e a quem pertence o Centro de São Paulo.

Desde esta terça (3), a Polícia Militar está agindo na região que ficou carinhosamente conhecida como Cracolândia (em clara homenagem à comuna italiana de Craco, na região da Basilicata, com 796 boas almas – se ninguém morreu hoje) para espalhar usuários e vendedores de drogas para outros pontos da cidade. Eles dizem que estão reprimindo o tráfico e o consumo, mas nem o soldado mais raso acredita nisso. Sabem que estão é limpando os arredores da Sala São Paulo, da Pinacoteca, do Museu da Língua Portuguesa e do empreendimento imobiliário conhecido como Nova Luz desse estorvo indesejável. A cada mata-leão em usuário de crack, o metro quadrado sobe de preço.

Detalhe: a operação da PM se chama "Sufoco". Não, não é criativa, muito menos certeira. Talvez fosse melhor algo como "Operação Guardanapo de Boteco". Não resolve o problema, apenas o espalha.

Detesto o verbo "revitalizar". Ele tem sido usado para justificar grandes atrocidades, como se a vitalidade de um lugar fosse medida pela ausência de gente pobre. Revitalizar têm sido construir museus e praças e mandar o lixo humano para longe. Não apenas expulsando dependentes, mas também a população pobre que habita a região e que não cabe nos planos do governo. O que? Arruaceiros jogando bola e empinando pipa assustando a gente de bem? Sai pra lá!

Melhor tirar da vista do que aceitar que, se há pessoas que querem ocupar o espaço público por algum motivo, elas têm direito a isso. A cidade também é delas, por mais que doa ao senso estético ou moral de alguém. Ou crie pânico para quem acha que isso é uma afronta à segurança pública e aos bons costumes.

Enxotar é mais fácil que implantar políticas de moradia eficazes – como uma reforma urbana que pegue as centenas de imóveis fechados para especulação e os destine a quem não tem nada. Ou repensar a política pública para usuários de drogas, hoje baseada em um tripé de punição, preconceito e exclusão e, portanto, ineficaz. Muitos vêem os dependentes químicos como estorvo ao invés de entender que lá há um problema de saúde pública.

As ações implantadas pelas três esferas de governo não produziram nenhuma mudança significativa ainda que não fosse a estética. E o povo gosta do discurso idiota da polícia na rua (oooobra de Maluf), mesmo que essa presença não sirva. Prender traficantezinho mixuruca e mandar os usuários acenderem o cachimbo na Barra Funda ou no Brás é solução para o crack em São Paulo?

Tô sim com dó. Mas não dos dependentes químicos. Muito menos da população de rua. Tô com dó dos gestores da cidade e de parte dos seus habitantes que compactuam com saídas fáceis para problemas complexos.

Até levaria essa patota toda para casa. Mas temo não ter a quantidade de uísque e outras drogas lícitas a que alguns desses cavalheiros e damas estão acostumados.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.