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Leonardo Sakamoto

Cale-se! O silêncio machuca, o diálogo é música

Leonardo Sakamoto

23/03/2012 16h50

Discordo visceralmente de muita coisa que leio e escuto, mas nem por isso acho que elas não tenham o direito de vir a público. Pelo contrário, repetindo Voltaire, discordo, mas defendo o direito de que seja dito. Afinal de contas, a saída para contrapor uma voz não é forçar o silêncio, mas sim outra voz. O silêncio dói, machuca. O diálogo é música.

Por isso, sinto um amargo na boca quando vejo pessoas que, sob o risco de verem seus argumentos naufragarem em sua própria arrogância, tentam calar o outro. Não percebem elas que muitas vozes dissonantes não vêm da cabeça ou do coração, mas sim do fígado. Por isso, regeneram-se. E, se cortadas ao meio, geram duas. Multiplicam-se. Uma idéia forte é algo poderoso. Difícil de ser contido com a força física. Tomo a liberdade de retomar um debate que travei aqui, tempos atrás, e que cai como uma luva com fatos que aconteceram recentemente.

Acredito que meu ponto de vista está correto, mas isso não faz dele uma Verdade Absoluta – até porque verdades absolutas – do meu ponto de vista – não existem (nem esta que acabou de ser escrita). Não mais. Morreram. Uma outra pessoa pode defender que a forma mais correta de acabar com a fome, a violência, as guerras, a injustiça seja por outro caminho. Ou que a paz de espírito ocorra obrigatoriamente através de grandes concessões pessoais ou obediência a regras ditadas por profetas. Desse enfrentamento de idéias e de propostas sairá um vetor resultante que apontará para uma direção, dependendo da correlação de forças envolvidas, dos atores dedicados a isso, da aceitação dessas idéias pelo restante de uma sociedade.

Por exemplo, não acredito que o livre mercado seja a panacéia para tudo, mas há quem diga que sim. Ótimo, vamos discutir os argumentos que embasam as diferentes posições e não chamar o outro de canalha ou burro, esquerdista idiota ou direita fascista, e travar por aí a discussão. Ou pior, defender o fechamento de um veículo de comunicação, a demissão de uma profissional, o cerceamento de uma igreja.

Muitos simplesmente repetem mantras que lêem na internet, ouvem em bares ou vêem na igreja e não param para pensar se concordam ou não realmente com aquilo. É um Fla-Flu, um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização, tornando esse outro uma coisa sem sentimentos. Isso é muito útil durante eleições polarizadas, mas péssimo para o cotidiano.

Somos seres complexos com múltiplos níveis de relações. Tenho colegas conservadores politicamente, mas liberais em comportamento que guardo em muito mais estima do que colegas progressistas politicamente, mas com um discurso e prática comportamentais bisonhos. Afinal de contas, não é possível defender a liberdade dos povos e transbordar machismo, tratando a companheira como uma serva em casa.

É mais fácil pensar de forma contrária, preto no branco, os de lá, os de cá. Mas, dessa forma, a vida vai ficando mais pobre. Sem o direito ao convívio diário com aqueles que pensam de forma diferente, estancamos em nossas posições, paramos de evoluir como humanidade. Do outro lado sempre estará um monstro e do lado de cá os santos. Isso sem contar a impossibilidade de apreciar tudo o que o outro tem de melhor – do ombro amigo à conversa inflamada em uma mesa de bar.

Sugiro que busquem a tolerância no diálogo, mesmo que firme e duro, e se perguntem se acham que estão certos a todo o momento, uma vez que nossa natureza não é de certezas, mas de dúvidas e falhas que só conseguem ser melhor percebidas no tempo histórico.

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No dia 21 de março, um protesto contra o direito ao aborto reuniu pessoas na Praça da Sé, em São Paulo. Elisa Gargiulo, da banda Dominatrix, resolveu dar a sua opinião, contrária, pacificamente. Poderia ser um momento de diálogo, rico. Mas calar Elisa foi mais fácil. No perfil da banda no Facebook, ela afirma:  "Fico pensando na violência que sofri hoje e quantas mulheres morreram pra que tivéssemos o direito de protestar e senti certa raiva de quem não bota a cara nas ruas, ficam apenas nas redes sociais. A luta é difícil, eu sei, mas nada vai vir via tuitadas. Estamos lutando pelas vidas das mulheres". O vídeo não precisaria nem desta explicação. Ele fala por si.

A mesma Praça da Sé que reuniu centenas de milhares na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, pré-festejo de boas vindas aos Anos de Chumbo, em 1964, mas também outras centenas de milhares nas manifestações pelas Diretas Já, celebração pela democracia que despontava no horizonte, em 1984.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.