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Leonardo Sakamoto

Esta é minha vassoura e aquela, minha empregada

Leonardo Sakamoto

27/04/2012 18h01

Eu não gosto de republicar textos. Mas em homenagem à sociedade brasileira nesta sexta (27), Dia Nacional da Trabalhadora Doméstica, eu me dou o direito a abrir uma exceção. Até porque, por conta de efeméride, aparecem dezenas de especialistas elogiando essas "incansáveis companheiras do lar" ou "assistentes do dia-a-dia". Mas, em outras época do ano, pipocam doutores dizendo que não é o momento de garantir direitos a determinada categoria de trabalhadores porque a economia não aguenta, vai gerar mais informalidade, as estruturas do país não suportam esse luxo ou o bagre-de-cabelo-moicano não se reproduziu ainda este ano.

A Organização Internacional do Trabalho, em sua 100ª Conferência realizada em Genebra, na Suíça, aprovou direitos iguais para trabalhadores domésticos em relação ao restante da sociedade. Ratificando a nova convenção que tratará do tema, o Brasil terá que alterar a Constituição para fazer valer a isonomia. Hoje, por exemplo, é facultativo recolher o FGTS dos trabalhadores domésticos. Com a mudança, deve se tornar obrigatório.

O país conta com mais de 7,2 milhões de trabalhadores domésticos – o ideal seria falar em "trabalhadoras domésticas", uma vez que a esmagadora maioria é composta de mulheres, mas a nossa língua, crescida em terreno patriarcal, tem suas leviandades. Apenas em 2008, o aumento na categoria foi de 600 mil pessoas – fruto do crescimento econômico. Elas ganham, em média, menos de um salário mínimo por mês e passam por jornadas de quase 60 horas semanais (cadê o pessoal que gosta de espernear quando se fala em redução da jornada de trabalho?)

Por que levou tanto tempo para aprovar uma convenção assim, uma vez que as discussões se arrastam por meio século? Porque a Europa precisa de mão-de-obra barata, mas não quer garantir aos imigrantes os mesmos direitos de quem nasceu no continente. Reclamam que isso vá gerar uma hecatombe sobre suas contas previdenciárias – mas na hora em que precisam de alguém para fazer o trabalho sujo por eles ninguém fala nada. Além disso, o aumento no custo do trabalho doméstico impacta diretamente no custo de vida de uma parcela da população, pressionando por aumento de salários de quem utiliza desses serviços, o que gera demandas junto a empresas e governos.

Mas se ignorarmos os direitos dessas trabalhadoras, estamos considerando que uma sociedade pode (continuar a) aceitar basear o seu crescimento sobre o esfolamento de um determinado grupo.

(Só por curiosidade, trabalhadoras domésticas no Brasil e no mundo têm sido reduzidos à condição de escravos, trazidos do interior ou de outros países, com bastante frequência. Paris, com suas meninas argelinas que não podem sair de casa, e as sobrinhas que saem do Nordeste para trabalhar na casa dos "tios" nas capitais são exemplos disso.)

Incomodo-me bastante que muitas plantas dos apartamentos no Brasil ainda tenham o "Quarto de Empregada" destacado, ao lado da cozinha e da lavanderia – versão contemporânea da senzala. Pode parecer besta, mas isso é carregado de simbolismo e, portanto, fundamental, herança da escravidão oficial, que moldou o nosso país. Aquele tantinho de espaço ao lado das vassouras, rodos e produtos de limpeza, destinado à criadagem me irrita. "Ah, mas como você quer que a minha empregada durma no serviço?" Primeiro, tenho vontade de jogar um litro de cândida na cabeça da "sinhá" que solta um "minha" empregada, como se fosse uma tábua de passar roupa, um objeto pessoal. Segundo, se ela tiver que dormir no serviço, deveria compartilhar um espaço mais digno que o furúnculo da casa.

Garantir direitos iguais vai gerar informalidade no Brasil? Se o governo não fizer seu trabalho de fiscalização e os trabalhadores não se organizarem de forma firme para reivindicar isso, vai sim. Mas a incapacidade do Estado em garantir o cumprimento de uma lei não tira dela a sua legitimidade. Ainda mais quando é uma regra civilizatória e que traz dignidade.

De acordo com documento da Organização Internacional do Trabalho, "as mulheres e os negros são mais presentes nas ocupações informais e precárias e as mulheres negras são a grande maioria no emprego doméstico, uma ocupação que possui importantes déficits no que se refere ao respeito aos direitos trabalhistas" no Brasil.

As trabalhadoras domésticas representavam 15,8% do total da ocupação feminina em 2008. São 6,2 milhões de mulheres que se dedicam a essa profissão, e a maioria delas são negras. Mais de 20% das mulheres negras ocupadas estão precisamente no trabalho doméstico, que é caracterizado pela precariedade. Somente 26,8% das domésticas tinham carteira de trabalho assinada em 2008. Entre as trabalhadoras domésticas negras, o nível é ainda maior: 76% não possuem carteira assinada.

Estamos crescendo economicamente. E, por isso, este é o momento ideal para mudarmos o rumo das coisas e garantir direitos. Essa conta nós temos que bancar, um preço baixo por garantir igualdade. Afinal de contas, é legítimo mantermos o conforto de alguns em detrimento à qualidade de vida de muitos?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.