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Leonardo Sakamoto

O problema das "duas portas" no sistema de saúde público

Leonardo Sakamoto

16/05/2012 01h40

O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve suspensa a lei que permite ao governo destinar 25% dos leitos de hospitais públicos administrados por entidades sem fins lucrativos para os usuários de planos de saúde. Os contrários à proposta dizem que isso criaria (sic) cidadãos de primeira e de segunda classe nas instituições públicas. O governo afirma, por outro lado, que ajudaria a ressarcir os recursos gastos com tratamento de pacientes dos planos de saúde nos hospitais públicos.

A decisão do TJ-SP foi acertada, a meu ver. Qualquer cidadão pode usar o sistema público se desejar. Mas sem os benefícios de um atendimento diferenciado. E, por mais que o governo negue, essa lei acabaria por justificar as chamadas "duas portas" de atendimento. Melhor seria garantir um serviço público de qualidade a ponto de tornar desnecessário o cidadão tornar-se refém de um plano de saúde. Que, não raro, lhe dá as costas no momento em que mais precisa de ajuda.

Planos devem garantir reembolso ao Estado quando seus clientes usarem o sistema. Já existem meios legais que possibilitam isso. O problema é cobrar da iniciativa privada. O problema é sempre esse.

A causa aparente de um problema na fila de um hospital público pode até ser um servidor incompetente, relapso ou que tentou e não conseguiu cumprir o seu dever por falta pontual de estrutura e recursos. Mas a responsabilidade pela falência do sistema é política e não técnica. É o sistema público de saúde que não consegue garantir um atendimento mínimo de qualidade à população. Ou seja, em última instância, a culpa deveria recair sobre quem foi eleito para isso e não conseguiu (ou não quis) alocar recursos ou fazer cumprir leis para diminuir o sofrimento da população.

Seria populismo idiota, é claro. Mas, ao mesmo tempo, historicamente pedagógico e até transformador se os ocupantes de cargos públicos eletivos fossem obrigados, uma vez na vida, a utilizar o Sistema Único de Saúde (SUS) em caso de doença ou emergência. E aproveitando que estou me refestelando na demagogia inútil, incluiria também que enquanto uma mulher pobre não puder usar o SUS para fazer a interrupção de uma gravidez, independentemente do motivo, que famílias ricas não possam fazer as suas em clínicas de bairros nobres nas grandes cidades.  Os supostos bastiões da moralidade contrários ao aborto aguentariam uma gravidez indesejada de sua filha ou esposa? Eu sei que as clínicas são ilegais e, portanto, isto é apenas retórica. Mas se a realidade é dura, sonhemos um pouco.

Infelizmente, muita gente que ajudou o bolo a crescer não recebe nem a cereja, quanto mais uma fatia decente. A verdade é que muitos desses continuarão sendo homens-placa nos centros das grandes cidades ou empregadas domésticas, mascarando aquela dor insuportável nas costas contraída ao longo de décadas passando roupa para terceiros.

Contentam-se em saber, pela TV, que médicos de alguma universidade nos Estados Unidos descobriram que faz bem para a saúde trabalhar até morrer. O que tende a acontecer antes a para homens-placa e empregadas domésticas, porque não têm dinheiro para pagar pela própria saúde.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.