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Leonardo Sakamoto

Todos são suspeitos até que se prove o contrário

Leonardo Sakamoto

21/07/2012 15h39

Um empresário foi morto após levar dois tiros na cabeça durante uma abordagem policial em um bairro nobre da capital paulista na noite de quarta (18). Um estudante de 19 anos também foi alvejado e morto, nesta quinta, após perseguicão policial na cidade de Santos. Em janeiro, um estudante foi agredido e ficou sob a mira do revólver de um policial militar no campus do Butantã da USP porque não quis mostrar a sua documentação. Neste ano, a PM foi acusada de usar métodos de tortura para desocupar a comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos, e a Cracolândia da Luz, na região central de São Paulo. No ano passado, a mesma polícia reprimiu passeatas de jovens que defendiam o debate sobre a descriminalização da maconha com balas de borracha, gás lacrimogênio e bombas de efeito moral. Isso sem contar os que tombam diariamente em bairros pobres, cujas mortes são registradas como "autos de resistência" ao invés de execução.

A história do empresário morto na quarta me fez lembrar a de outro homem – os dois tinham a mesma idade, 39 anos. Este foi encontrado enforcado pouco mais de duas horas após ter sido preso. Supostamente, era traficante e transportava cocaína. Supostamente, teria se enforcado usando um cadarço de sapato. Supostamente. Um policial afirmou que o acusado usou um pedaço de papelão para arrastar um cadarço que estava fora da cela a fim de se esforcar. Risível.

Ao contrário de outros países, como a Argentina, o Brasil não consegue tratar suas feridas abertas na ditadura para que cicatrizem. Apenas as tapa com a cordialidade que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixou claro aos seus quadros que usar da violência, torturar e matar não são coisas aceitáveis. E com a anuência da Justiça que, através do seu silêncio, manteve aqueles crimes impunes.

Enquanto não acertarmos as contas com o nosso passado, não teremos capacidade de entender qual foi a herança deixada por ele. A ditadura se foi, sua influência permanece. Não somos um país em que o Estado respeita os direitos humanos e não há perspectivas para que isso passe a acontecer.

O impacto desse não-apoio se faz sentir no dia-a-dia nas blitz, nos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A justificativa é a mesma usada nos anos de chumbo brasileiros ou nas prisões no Iraque e em Guantánamo, em Cuba: estamos em guerra. Guerra contra a violência, guerra contra as drogas, guerra contra inimigos externos. Ninguém explicou, contudo que essa guerra é contra os valores que nos fazem humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás.

Nossa política para tratar dos abusos durante a ditadura prevê compensações financeiras para quem sofreu nas mãos do Estado. Seguindo a mesma linha, o governo do Estado de São Paulo anunciou, nesta sexta, uma indenização à família do empresário, defendendo o treinamento dado aos seis policiais. Paga-se – e não se fala mais nisso.

Nada sobre rediscutir a filosofia da corporação. Pois o problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel e os métodos da polícia em nossa sociedade. Setores da polícia estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras. Outra parte sabe que a mesma sociedade está pouco se lixando para eles e suas famílias, pagando salários ridículos e cobrando para que se sacrifiquem em nome do patrimônio alheio.

Parte da população apoia esse tipo de comportamento policial. Gosta de se enganar e acha que se sente mais segura com o Estado agindo dessa forma. Essas pessoas são seguidoras da doutrina: "se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem".

E se não se importam com inocentes, imagine então com quem é culpado. Para eles, é pena de morte e depois derrubar a casa e salgar o terreno onde a pessoa nasceu, além de esterilizar a mãe para que não gere outro meliante. Enfim, mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com a violência como principal instrumento de ação policial.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.