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Leonardo Sakamoto

São Paulo é o maior fumódromo do país

Leonardo Sakamoto

17/08/2012 08h49

Quando uma massa de calor cobre a capital paulista, torna o dia-a-dia na poluída e cinza São Paulo um test drive do inferno. Se é ruim para mim que moro em apartamento de alvenaria, imagine para quem vive sob teto de zinco ou estuda em escolas de madeira. O problema de torcer por uma chuva que exorcise o capeta e limpe o ar é que ela sempre encontra uma cidade impermeabilizada por asfalto e concreto, com infra-estrutura insuficiente de escoamento de águas pluviais, além de moradias precárias em situação de risco (enquanto há prédios e mais prédios fechados para especulação imobiliária, sem função social). É claro que na lista de prioridades da metrópole – pelo menos na dos que a governam ou sobre ela noticiam – o engarrafamento causado por uma enchente é sempre mais relevante que o desabamento de cortiços ou a inundação de uma favela.

Como já disse aqui antes, nesses dias, quando retorno a São Paulo pelo alto, vejo minha cidade imersa em uma camada marrom e espessa, uma coisa de metros de altitude e quilômetros de largura. Aí me lembro que convivemos com uma faixa escura preenchendo o lugar em que estaria o horizonte – levantado, por ela, alguns centímetros do seu lugar de direito. Talvez pelo fato disso parecer distante, o paulistano não acredita que está imerso nela. Sente seus efeitos quando os olhos começam a coçar, a asma ataca ou aquele pigarro fica mais comprido que o de costume. Os pronto-socorros pululam de gente, principalmente crianças e idosos, atendidos por problemas respiratórios causados ou agravados pela poluição.

Enquanto isso, em um final de tarde, em um bar vilamadalenizado, amigos de amigos se refestelavam ao dizer que a metrópole fica linda nessa época do ano, com seus pôres-de-sol vermelhos… (!) Tento até protestar, mas a minha tosse pediu que me mantivesse calado, com modos.

Os noticiários salpicam aqui e ali que a inversão térmica está dificultando a dispersão dos poluentes, mas nada de falar sobre o nosso modo de vida e as consequências de nosso modelo de desenvolvimento: carbono, enxofre, chumbo e uma sopa de produtos químicos expelidos principalmente por veículos. Comemoramos cada novo recorde de produção e comercialização de automóveis e a graça alcançada pelo IPI reduzido – mas sem muita efusão, para não acabar com o fôlego. Pra frente, Brasil!

Se por um lado esse crescimento econômico dá a possibilidade de ter acesso a coisas que não tínhamos antes, por outro outro nos tira preciosos dias de vida. Pois respirar o ar de São Paulo certamente me levará mais cedo para a sepultura. Estamos programados para aceitar bovinamente que moramos em um fumódromo – quem vive em Sampa, traga o equivalente a três cigarros por dia. E se alguém reclama, algum adepto do "paulistanismo", o nacionalismo paulistano, patologia que cresce impune por essas bandas do Trópico de Capricórnio, prontamente vomita: São Paulo, ame-a ou deixe-a.

Imaginem isto aqui em 100 anos, com três, quatro graus a mais de temperatura média anual, resultado do aquecimento global causado pela nossa própria ignorância e voracidade por recursos naturais? Além do mais, quando boa parte da Amazônia virar um grande pasto, entrecortado por plantações de grãos e de dendê, a ausência da floresta por lá vai piorar no clima desta cidade, uma vez que a região amazônica é que manda umidade para São Paulo. Sem isso, aqui seria tão seco quanto outros locais do planeta na mesmo latitude. Talvez não tenhamos mais as enchentes de hoje. Mas até lá já teremos passado o limite que torna a vida na cidade suportável.

Se bem que para milhões de paulistanos, excluídos por questões ambientais, sociais, econômicas, culturais esse limite já foi ultrapassado há muito tempo. Ou talvez nunca tenha existido.

Boa parte desses vêem com desconfiança toda essa animação eleitoral que, a cada quatro anos, toma conta das ruas da cidade, pedindo o seu voto. Analistas dizem que isso é prova de que falta ao povão cultura política.

Temo que, na verdade, isso seja a prova exatamente do contrário: a indiferença é por excesso de cultura política.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.