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Leonardo Sakamoto

Carta pessoal a um jornalista xingado e incompreendido

Leonardo Sakamoto

21/09/2012 16h01

Caro amigo,

Faz tempo que a gente não se fala, né? O ridículo é que você mora quase aqui do lado da minha choupana e vejo você com frequência menor do que nossos amigos que vivem fora de São Paulo. Por conta de alguns problemas de saúde, não estou podendo beber as boas coisas da vida, mas assim que o meu organismo me der trégua, marcamos algo. Ou não.

Quanto à sua reclamação, não tenho muito o que dizer. Mas não fique chateado. Não acho que a interpretação de texto morreu com a internet. Também não sei se é possível cravar que estamos mais desatentos, superficiais ou incapazes de nos focar. Talvez a intepretação de textos nunca esteve viva. A internet simplesmente espalhou com maestria a notícia de que o cadáver andava por aí, assombrando.

Uma amiga nossa disse que, na verdade, ninguém nunca entendeu muita coisa. Mas os textos não tinham área de comentários. E como apenas meia dúzia de pessoas tinha tempo para mandar carta e, depois, outra meia dúzia de encaminhar e-mail, pensávamos que estava tudo OK. Que o pessoal entendia o que a gente escrevia.

A bem da verdade, tenho que fazer o advogado do diabo. Um punhado considerável de nossos colegas escreve mal, é preguiçoso ou não está nem aí, no melhor estilo Johnny Walker com Activia. Ou seja, nunca se preocupou se o leitor estava realmente entendendo a mensagem. Simplesmente seguia o manual de redação (nos lugares que possuem esse mimo, porque na grande maioria, é "dez" e "10" na mesma revista sem o mínimo pudor), escrevendo para o que acreditavam ser a média das pessoas. Dizem-se ateus, mas depositam uma assustadora fé de que todo mundo estava decifrando as suas mensagens. O que, convenhamos, é pedir para se enganar. Como (alguns) membros de governos, diretores de empresas e gestores de instituições da sociedade civil faziam de conta que absorviam as notícias e se manifestavam, parecia que tudo estava indo bem.

Cara, sem querer puxar teu saco (sua autoestima já é assustadoramente alta, então é errado alimentá-la ainda mais), você escreve bem, de maneira incrivelmente simples. Sou seu fã. Mas acho que não tem jeito não. Toda vez que você produzir algo mais complexo, sua honorável progenitora será devidamente xingada por um grupo de pessoas que interpretou diferentemente do que você supunha ser o sentido do que escreveu.

Lembra das nossas aulas na faculdade? Então, eu também não… Mas os neurônios que não foram queimados em fechamentos e pautas modorrentas nos anos seguintes ainda guardam a impressão de que para compreender o sentido de um texto não basta entender o que significam as palavras individualmente ou mesmo alguns pacotes de expressões. É saudável que tenhamos acesso aos elementos simbólicos que fazem parte da constituição do grupo social para o qual aquele texto se destina. Pois esses grupos não entendem naturalmente o que pretendemos dizer e vice-versa. A culpa é de quem? Dos dois lados.

Enfim, como diria o nobre Rodolfo Vianna, que me escreveu um texto sobre a ironia na internet dia desses, o estranho não é as pessoas não entenderem ironias. O milagre é quando elas captam o que a gente quis dizer.

Inserido no fluxo comunicativo emissor – mensagem – receptor, o texto é obra aberta, polissêmico. Claro, nem tudo é relativo: dizer isso não equivale a afirmar que qualquer significado é possível. Na grande maioria dos casos, o problema é a falta de familiaridade com o texto escrito. Daí a incapacidade de entender "direito" o que está escrito. E de escrever "direito" o que se quis dizer.

Ah, mas com a internet as pessoas estão escrevendo para seus próprios grupos, dentro de seus próprios campos simbólicos. Bem, se conseguirmos indivíduos ou organizações que filtrem e traduzam determinadas informações hipercodificadas para esses grupos, teremos a beleza de conseguir democratizar mais conhecimento. Diariamente ajudamos a forjar símbolos coletivos que valem para uma grande gama de pessoas de Norte a Sul do país (a tristeza é que, se você quiser falar de "tchu" e de "tchá" diante de uma ameaça de um "ai, se eu te pego" será bem mais fácil do que discutir consumismo e discriminação de gênero…)

Pode ser também que nada dê certo. Zona por zona, o que temos a perder?

Lembra o trabalho que o Rodrigo Ratier vinha tocando, tempos atrás, com escolas públicas, no sentido de desenvolver com professores e alunos a interpretação de textos da imprensa e a leitura crítica da mídia? Então, a solução passa por aí também.

Com tudo isso, nosso emprego vai mudar. A função do jornalista na sociedade vai mudar, camarada. Prepare-se.

Enquanto isso, uma sugestão. Tem muita gente possuída pelo capeta que vê um título e entra em um texto achando que o jornalista faz parte de uma conspiração global de esquerda ou direita e procura pelo em ovo. Não adianta que o texto diga outra coisa e tenha tantos elementos para deixá-lo claro que fique até chato, alguns sujeitos vão ler o que quiserem e soltar fogo pelas ventas.

Nesse caso, simplesmente ignore. Não vou dizer que o sujeito vai embora porque tem muita gente sem ter o que fazer por aí. "Mas não se irrite", como diria o grande Roberto Bolaños.

Enfim, entenda-os. A ignorância é um lugar quentinho.

Beijo grande,

Sakamoto

PS: Vou tirar os palavrões, dar uma editada para parecer texto de gente séria e postar no blog, quer você queira, quer não, porque ficou legal.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.