Estudo mostra impacto da produção de soja e cana em áreas Guarani no Mato Grosso do Sul
O Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da Repórter Brasil está lançando o relatório "Em terras alheias – a produção de soja e cana em áreas Guarani no Mato Grosso do Sul". Ao analisar os impactos e conflitos em seis aldeias, a pesquisa auxilia a discussão sobre a corresponsabilidade da cadeia produtiva dessas duas culturas no drama vivido pelos indígenas no Estado. Ou seja, como a situação das populações indígenas desse estado, que ganhou recentemente as redes sociais, se conecta com o dia a dia dos demais brasileiros. Cana que se torna açúcar e etanol. Soja que entra na composição de tantos alimentos que é impossível enumerá-los em um só post.
Com base em dados de órgãos públicos e entrevistas in loco nas aldeias, o trabalho buscou mapear a incidência de produtores destas commodities em seis áreas: as Terras Indígenas (TIs) Jatayvary, Guyraroká, Takuara e Panambi-Lagoa Rica (já declaradas pela Funai), e as áreas Laranjeira Nhanderu e Guaiviry (em estudo pela Funai).
A divulgação deste relatório acontece em um momento em que os conflitos de terra entre indígenas e produtores rurais têm se acirrado no Mato Grosso do Sul. No período entre a realização das pesquisas, em julho deste ano, e sua divulgação, várias retomadas de terra pelos Guarani Kaiowá levaram a novos confrontos e reações extremadas por parte de fazendeiros (com ataques à bala a acampamentos e ameaças explícitas), expondo com força renovada o histórico drama da luta pela terra vivido pelos povos indígenas brasileiros.
O reconhecimento legal, e também pelo setor produtivo, do direito das populações Guarani Kaiowá a terras ancestralmente por elas ocupadas, das quais foram expulsas tanto pelas políticas públicas do governo quanto pelo avanço do agronegócio, é um fator essencial para a sobrevivência destas populações. Neste sentido, o relatório apresenta históricos dos processos de retomada das áreas estudadas (incluindo dois dos mais brutais casos de assassinato de lideranças Kaiowá, os caciques Marcos Veron, na TI Takuara, e Nizio Gomes, em Guaiviry), aponta os impactos da produção de commodities e lista propriedades privadas e produtores no interior desses territórios.
Duas usinas no Estado, São Fernando e Raízen já se comprometeram a não mais comprar a produção de cana em áreas indígenas. Tal medida de responsabilidade socioambiental empresarial é um primeiro passo no reconhecimento dos direitos indígenas pelo setor produtivo, fazendo-se urgente sua adoção pelas demais usinas sucroalcooleiras, usinas de biodiesel, traders e cerealistas.
Abaixo um trecho do relatório:
O agronegócio brasileiro é o um dos setores que mais tem crescido nos últimos anos, com apoio sólido do governo federal. Os recursos destinados às atividades agropecuárias via Plano Safra têm aumentado na mesma medida, perfazendo R$ 93 bilhões na safra 2009/2010, R$ 100 bilhões na safra 2010/2011, R$ 107 bilhões na safra 2011/2012 e R$ 115,2 bilhões na safra 2012/2013.
Apesar das oscilações dos preços das commodities agrícolas no mercado internacional, os ganhos se mantiveram consideráveis em 2012, o que impulsionou os investimentos. De acordo com a estimativa de safra da Conab, este ano o país produzirá 165,9 milhões de toneladas de grão, 1,9% a mais do que na safra anterior (no Mato Grosso do Sul, o aumento foi de 22,9%). A área plantada também aumentou em 2% no Brasil, ocupando 982,2 mil hectares a mais do que na última safra (no Mato Grosso do Sul, este aumento foi de 12,8%).
Um dos efeitos do cenário positivo para o setor foi o aumento do preço das terras. De acordo com uma análise da consultoria Informa Economics FNP, especializada no mercado agropecuário, datada de setembro de 2012, o preço das terras no país teve um aumento de cerca de 32% nos últimos 12 meses. Em maio de 2011, o Mato Grosso do Sul sofreu um aumento médio de 30% no valor da terra em relação a 2010, índice que chegou a 100% no norte do estado, de acordo com o Sindicato dos Corretores de Imóveis de Mato Grosso do Sul.
A valorização do agronegócio e das terras nas últimas décadas tem tido um efeito preocupante sobre o processo de reconhecimento dos territórios indígenas, principalmente nas regiões de expansão da fronteira agrícola. Em números totais, por exemplo, o presidente Fernando Collor de Melo homologou 112 Terras Indígenas (TIs) entre 1991 e 1992, e entre 1992 e 1994, Itamar Franco homologou 18. Nos seus oito anos de governo, Fernando Henrique Cardoso homologou 145 TIs. Já no mandato de Luiz Inácio Lula da Silva ocorreram 79 homologações, e no de Dilma Rousseff, apenas três.
O setor produtivo – com apoio, nos últimos anos, do governo estadual – tem exercido uma oposição ostensiva ao processo de reconhecimento das terras indígenas no Mato Grosso do Sul. Por outro lado, no entanto, a trágica situação dos Kaiowá também levou a um movimento mais amplo e intenso de reconhecimento de suas características sócio-culturais e de seus direitos ancestrais, inserindo no tabuleiro das disputas conceituais um novo parâmetro de valor, que se contrapõe ao econômico-financeiro.
Nesse sentido, tanto no âmbito do Ministério Público Federal quando no acadêmico e das organizações indigenistas e de direitos humanos, a terra ancestral – o Tekoha – e seu simbologismo inerente não apenas resignificam o conceito de direito, mas também o de valor.
Para os Guarani, o Tekoha é o lugar "em que vivemos de acordo com o nosso costume". Seu tamanho pode variar em superfície, mas estrutura e função se man- têm igual: tem liderança religiosa e política própria, e for- te coesão social. Ao Tekoha correspondem as grandes festas religiosas e as decisões políticas e formais nas reuniões gerais (o grande conselho Guarani Aty Guasu). O Tekoha tem uma área bem delimitada, geralmente por bosques, arroios ou rios, e é uma propriedade comunal exclusiva; ou seja, não se permite a incorporação ou a presença de estranhos. Acima de tudo, o Tekoha é uma instituição divina, criada por Nhanderu (Deus).
Esta noção de pertencimento, do ancestral e do divino inerente aos territórios explica, em parte, a presença – e muitas vezes liderança – dos rezadores (nhanderus) nas ações de retomada de terra, bem como a resignada resistência às condições mais adversas de desabrigo, fome, violência e lentidão dos processos demarcatórios, às quais os Guarani se submetem nos acampamentos. O reconhecimento do direito Guarani às suas terras é, assim, um pressuposto à sua sobrevivência como povo. Na balança de valores supera (ou nem é comparável), no Estado Democrático de Direito, a contabilidade econômica da atividade agropecuária, ou mesmo ao processo de apropriação das terras pelas forças privadas ou estatais.
Este reconhecimento se espera que seja incorporado nas cadeias produtivas e nas políticas públicas referentes à produção de commodities no Mato Grosso do Sul.
Para download do relatório, clique aqui.
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