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Leonardo Sakamoto

Crianças produziam carvão com restos de madeira de lixão no Pará

Leonardo Sakamoto

05/11/2012 16h59

Crianças com menos de dez anos. Em um lixão. Procurando restos de madeira entre pregos enferrujados. Em uma área com risco de explosão. Para fazer carvão vegetal. E ajudar a família a comer.

Se uma história de ficção fosse escrita com esses elementos, ninguém acreditaria. Mas considerando que meninas indígenas de 12 anos vendem sua virgindade por R$ 12,00 em São Gabriel da Cachoeira (AM); que 30 crianças foram libertadas da escravidão de uma fazenda de cacau em Placas (PA), algumas com leishmaniose, outras com úlcera de Bauru e uma que ficou cega ao cair em um toco durante o serviço; que 25 crianças e adolescentes foram encontrados em matadouros em Nova Cruz, João Câmara e São Paulo do Potengi (RN), descarnando bois e, não raro, trabalhando por comida… bem, aí a gente começa a perceber que a vida é realmente mais estranha que a ficção.

Segue matéria de Daniel Santini, aqui da Repórter Brasil, sobre o caso das crianças que produziam carvão vegetal com restos de madeira coletados em um lixão:

Representantes do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho flagraram, no final de outubro, crianças e adolescentes recolhendo madeira para produzir carvão dentro de um lixão em Santarém (PA). Calçando apenas chinelos, os meninos reuniam tocos e ripas com farpas e pregos enferrujados e os agrupavam para incineração no próprio terreno. A queima acontecia em uma área com alta concentração de metano, gás inflamável resultante da decomposição do lixo.

"Foram encontradas crianças de menos de dez anos de idade produzindo carvão de maneira primitiva. Não estamos falando daquelas casinhas tipo iglu, mas de carvão fabricado no chão mesmo. Este carvão era produzido dentro de um lixão onde há decomposição de resíduos orgânicos, o que é um agravante. Há risco altíssimo de explosão", explica o procurador Allan Bruno, do MPT de Santarém.

O lixão de Santo André funciona há décadas como ponto de descarte não somente de lixo, mas também de entulho de construções e de resíduos de serrarias e madeireiras. O despejo de materiais teve início com um buraco aberto no passado, preenchido com toneladas de dejetos. A preocupação das autoridades em relação a explosões tem fundamento. Em outubro de 2010, incêndio relacionado à produção irregular de carvão assustou moradores do bairro.

Famílias vulneráveis – As crianças vítimas de trabalho infantil são de 13 famílias que sobrevivem do aproveitamento de materiais descartados no lixão. De acordo com as autoridades, o carvão artesanal era vendido diretamente para os consumidores, sem intermediários. Para Mary Garcia Castro, professora do programa de pós-graduação Família na Sociedade Contemporânea e de mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica de Salvador, é preciso considerar que a questão é complexa ao se atribuir responsabilidades pela situação degradante a que os meninos e adolescentes estavam submetidos.

"É muito fácil culpar as famílias, falar que elas não pensavam nas crianças e dizer que o certo seria tirar a guarda, mas é preciso considerar quais alternativas elas tinham. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera que não só a família, mas também a sociedade e o estado são responsáveis. A família, neste caso, parece o elo mais vulnerável. Quando se está numa lógica de sobrevivência, a família pensa na sobrevivência imediata", afirma a professora, que já fez parte do Conselho Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de Direitos da Mulher. "A ausência maior é de políticas públicas e principalmente de ação municipal. Se essas crianças estivessem em boas escolas em tempo integral não estariam no lixão. Vivemos no Brasil um momento em que estamos eufóricos com os índices econômicos, mas é preciso refletir se esses índices vão se sustentar com esse tipo de condições a que crianças e adolescentes são submetidos", defende.

Responsabilidade – Quem acompanhou a fiscalização pelo MPT foi a procuradora Márcia Bacher Medeiros, participante do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, que esteve na região para apurar denúncias de escravidão contemporânea. O caso das crianças no lixão foi encaminhado à procuradoria regional, que ficou de cobrar providências do poder público. "A responsabilidade pela situação é do Município que deveria ter cercado a área. A Prefeitura assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em fevereiro de 2002 assumindo este compromisso", sustenta o procurador Allan Bruno. "Além disso, a Constituição coloca como prioridade a proteção da criança e do adolescente. A erradicação do trabalho infantil deve ser meta dos municípios. E neste aterro, foi encontrado trabalho infantil e degradante ainda por cima, crianças em condições subumanas", completa.

Procurado pela reportagem, o secretário municipal de Planejamento Everaldo Martins Filho afirmou que a Prefeitura já tomou providências anteriormente para tentar resolver o problema. Ele afirma que 30 famílias que viviam no local foram realocadas e que o município fez um pedido de verbas para o Ministério das Cidades para reurbanizar a área do lixão. "Não temos como cumprir o TAC e cercar tudo porque é uma área em que a população circula. Este compromisso foi assumido por outra administração e não é algo que possa ser concretizado. Além disso, não dá para manter vigilância todo o tempo", afirmou.

Quanto às crianças e às 13 famílias encontradas em situação degradante vivendo dentro do lixão, o secretário prometeu providências e disse que, antes da transição para o próximo governo, a Secretaria de Assistência Social irá garantir condições dignas para todos. Na semana passada, o procurador-geral de Santarém Isaac Lisboa fez uma audiência com representantes da prefeitura para cobrar providências.

Por fim, o artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Casos como este deveriam ficar na memória da população para serem lembrados toda vez que algum(a) fuinha tentar reduzir a idade mínima para se trabalhar no Congresso Nacional. Tirando, dessa forma, a proteção legal que permite à criança que use seu tempo para estudar e brincar.

Até entendemos que a experiência de superação individual de alguns é bonita. Mas será que eles não imaginam que o trabalho infantil, que atrapalha o desenvolvimento da criança, não precisa ser hereditário?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.