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Leonardo Sakamoto

A patética história da laranja e da mexerica

Leonardo Sakamoto

07/01/2013 13h00

– Meu filho gosta de mexerica. Entendeu? Me-xe-ri-ca! Por que você deu laranja para ele?
– Faz bem à saúde e ele estava com cara de fome.
– Mas ele não gosta!
– Olha só! Devorou a laranja. Não sobrou nem o bagaço para contar história.
– Não tá vendo que é muito novo para entender do que gosta? Mas ele, no fundo, não gosta.
– Entendo. Desculpe-me então. Ele é alérgico?
– Não, nunca tinha experimentado. Só não gosta.
– E por que não gosta?
– Por que gosta de mexerica.
– Gostar dos dois não pode?
– Não combina. Ou se é de laranja ou se é de mexerica.
– Na sua opinião?
– Na de qualquer pessoa sensata.
– E por que ele gosta de mexerica?
– Como assim? Por que as pessoas gostam de mexerica? É da natureza humana gostar de mexerica!
– Não é não.
– Todo o ser humano gosta de mexerica.
– Desculpe, mas acho que tem gente que nem sabe como é uma mexerica. É capaz de apontar um caqui quando perguntada sobre a mexerica.
– Como ousa?
– Não quis ofender.
– Todo homem de bem sabe como é uma mexerica.
– Quando pequeno, foi ele quem tomou a iniciativa de experimentar mexericas?
– Não, a gente disse a ele que um bom menino come mexericas.
– E por que vocês falaram isso?
– Porque mexerica é bom.
– E ele tentou provar laranjas?
– Chegou a perguntar que gosto tem. E a gente explicou que laranja tem gosto ruim.
– E onde vocês ouviram isso?
– Em todo o lugar, ora! Nos comerciais da TV, na homilia do padre no domingo, em matérias dos jornais. A polícia fala isso, os professores falam isso, meu chefe fala isso, minha santa mãe falava isso. Pergunte a qualquer pessoa nesta praça! Então, laranja é ruim e mexerica é bom! E meu filho vai comer mexerica!
– Alguma prova científica?
– Claro! Estudos da Universidade Acme também apontaram que chupar uma laranja, sob uma tempestade elétrica, abraçado a um pára-raio, pode ser fatal.
– Tirando a justificativa "os outros disseram que é ruim", me dê uma razão para não chupar uma bela de uma laranja ao invés de uma mexerica.
– Eu não preciso por o dedo na tomada para saber que dá choque.
– Mas seu filho acaba de abocanhar uma laranja e está ali sorridente, quase vomitando de tanto rodar no gira-gira.
– Eu não preciso saber o porquê. Mas se todo mundo diz que é ruim é porque deve ser.
– Nem todo mundo. Eu chupo laranja todo o dia.
– Ele gosta de mexerica. Então, defendo o direito e a liberdade de todos que gostem de mexerica poderem consumir a fruta.
– Ótimo! Mas já parou para pensar o que levou a todos optarem pela mexerica e acharem que laranja é ruim, mesmo sem prová-la? Pode ser chamada de "liberdade" uma situação quando as opções que temos não são ilimitadas? Quando alguém já selecionou o que podemos ou não consumir sem que percebamos? Você pode comer toda a fruta que quiser. Desde que seja…mexerica. Outras opções existem, mas – talvez – você não consiga enxergá-las.
– Escuta, o senhor parece ser um bom homem. Mas não pega bem meu filho ser visto por aí com laranja, entende? O que vão pensar dele? Que endoidou? Que é um subversivo, um transviado? O que os coleguinhas e seus pais vão falar? O que a família da minha esposa vai dizer?! Filho meu só come mexerica e ponto final.
– Tudo bem, entendi.
– Precisamos proteger os valores. Caso contrário, que sociedade deixaremos para nossos filhos?
– É verdade. Espero que não tenha ficado chateado por ter oferecido a laranja.
– No início, sim. Mas vi que o senhor está apenas mal informado. Eu nunca chuparia uma laranja, mas entendo quem consuma essa fruta em particular. Sou um humanista, acho que as pessoas têm direitos, desde que não mexam com a vida dos outros. Aviso ao senhor, contudo, que tome cuidado com aquela família ali. Se vivessemos em um lugar decente, já estariam presos. Eles comem bananas. Um ultraje.

O nome dos frutos são ficcionais. Qualquer semelhança entre este diálogo e os comentários que aparecem neste blog é mera coincidência.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.