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Leonardo Sakamoto

Carnaval: você sabe quem pega a latinha que você jogou na rua?

Leonardo Sakamoto

10/02/2013 08h32

– Tio, compra um chiclete?
– Valeu. Mas não quero não.
– Um só! O que custa? Vai dizer que não gastou dez vezes isso em breja sambando a tarde inteira? Cê tá bem suado…
– E você é bem folgado, hein?
– E olha que o Carnaval é só na semana que vem. Compra um Halls então para tirar esse bafo. Vai dizer que sua mina gosta desse bafo de breja?
– Vai dizer que você não tem amor à vida?
– Vai comprar?
– Tenho que trocar dinheiro.
– Eu tenho bastante troco.
– Compro um de cada. Mas me responde uma coisa.
– Chora.
– Por que você está vendendo balas sozinho numa tarde domingo?
– Pra ganhar dinheiro. Dããã…
– Mas tem alguém cuidando de você? Cadê seus pais?
– Em casa, ué. Trabalharam a semana inteira, devem tá vendo o Faustão. Tô por conta, mano. Ninguém tem que cuidar de mim, não. É nóis.
– Mora aonde?
– Você é gambé?
– Não, sou jornalista.
– Trabalha na Globo? Conhece aquelas mina gata que falam na TV?
– Trabalho na internet.
– Ah, que chato. Mas um dia você consegue trampar na TV.
– Responde: você vende e entrega a grana para ajudar em casa?
– Ihhh! É, ruiiiiiim, é? E eu vou trabalhar para dar dinheiro pros meus pais? Sai fora!
– Então, você trabalha pra quê?
– Ué, você trabalha pra quê?
– Para comprar minhas coisas.
– Que coisas?
– Ah, roupas, tênis, celular. Para coisas pros amigos. Ir pras festas.
– E dá para comprar tudo?
– Ô.
– E comida, busão, cadernos?
– Ah, pra isso meus pais me dão. Eles dizem que estudar é importante, porque não estudaram.
– E dá tempo de estudar?
– Se não for à escola, minha mãe me mata. Então, tem que dar. Mas pra quê, né? Eu já ganho mais da metade que a minha mãe ganha fazendo faxina todo os dias. E meu pai trabalha, trabalha e a TV deles continua uma droga.
– Mas vender chiclete não é pra sempre.
– Tô sussa.
– E quantos anos você tem?
– Qualé, mano? Tem certeza que não é "coxinha"?
– Dezesseis?
– Hahaha, errou feio. Treze! Fiz semana passada.
– Então, parabéns.
– Parabéns, nada! De presente você vai gastar 20 contos comigo.

Cerca de 40% das crianças e adolescentes que trabalham estão acima da linha da pobreza. Parte significativa desses encontra-se no comércio urbano informal, lícito ou ilícito. Em muitos casos, busca dar vazão às suas aspirações de consumo – ou vocês acham que são apenas os jovens de classe média alta que são influenciados pelo comercial de TV que diz que quem não tem aquele tênis novo ou o vestido bonito são um zero à esquerda. Aprendem desde pequenos que, numa sociedade em que o caráter de uma pessoa é julgado pela quantidade de coisas que ela ostenta, ser é ter

Quando falo sobre trabalho infantil, muitos leitores bradam: "eu trabalhei desde cedo e isso moldou meu caráter"; "aprendi a dar valor às coisas com meu suor desde pequeno"; "criança ou está vagabundeando ou está trabalhando". Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita o suficiente para ser copiada pelo filho ou filha. Mas será que não imaginam que o trabalho infantil, que atrapalha o desenvolvimento da criança, não precisa ser hereditário? E que a luta maior é por criarmos condições para que ela tenha educação de qualidade, possa brincar e preparar para o momento em que será realmente demandada pela sociedade?

Com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças tornam-se adultas que sabem o seu exato lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, mas sem – necessariamente – refletirem sobre seus direitos e sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida. Trabalhando desde cedo, aprendem a serem engrenagens mas não, necessariamente, a questionar a máquina. E a qualidade da educação que recebem sómreforça isso, castrando e não libertando.

O fato é que a programação que muitos brasileiros receberam ao longo da vida, seja pelas circunstâncias, seja pela mídia e outra instituições sociais, foi tão boa que acreditam realmente que só "o trabalho liberta", como o dizia alguns portões que selavam destinos há 70 anos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.