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Leonardo Sakamoto

Vou trocar meus remédios por sessões de cura na igreja

Leonardo Sakamoto

23/02/2013 12h48

– Por favor, uma caixa deste opiáceo aqui.
– Tem receita e um documento da pessoa para quem é o remédio.
– A receita tá aqui. E é para mim. Hérnia de disco.
– Hum, me desculpe. É que você é tão novo… Pronto.
– E, aproveitando: tem esse antiinflamatório aqui da receita?
– Todo mundo pegou essa virose, né? Inflamação na garganta?
– Tenho uma artrose. Mas tudo controlado. Só nas mudanças bruscas de temperatura que o bicho pega.
– Coitado… Tá aqui.
– Por fim, pode me ver este remédio para pressão?
– Vai dizer que é para você também!
– Sim, ué.
– Nossa.
– Nossa, o quê? Algum problema?
– Nada, desculpe. Tô surpreso. Tanta coisa e tão jovem! Tem certeza que não é para seus pais? – hehe.
– Não, não é.
– Prontinho.

Pouco depois, saindo da loja, o atendente pesa a mão, grave, no meu ombro. Desta vez, menos brincalhão.

– Olha, casos como o seu não são coisa de remédio, não. Conhece as terças-feira da cura, da Igreja do Bananal da Várzea de Zeus? Aparece por lá, no templo maior. Acredito que, se você tiver fé, em sete ou oito terças seus problemas estão resolvidos.
– Eles curam tudo por lá?
– Olha, teve um rapaz com Aids que foi curado depois de 15 sessões. E dizem que uma dona de casa com câncer, desenganada pelos médicos, hoje está bem, tendo ido a 20. O seu caso se resolve com bem menos.

Algumas denominações evangélicas neopentecostais vendem prosperidade. Outras se utilizam da liturgia da prosperidade, mas também comercializam saúde e cura. E há aquelas que se especializaram só nesta última área e têm feito mais sucesso.

Mesmo com muita reza, se você não nasceu em berço de ouro, dificilmente vai ficar rico (se é jornalista então, puf! Esquece…). Mas com dedicação, sorte e algum apoio, dá para sair da lama e remendar a vida. Os poucos que conseguem ir além disso tornam-se testemunhos vivos da intervenção de Deus. Aleluia!

Mas curar-se de um problema de saúde é mais fácil. Recentemente, ouvi um infectologista, em uma entrevista no rádio, comentar que a medicina é capaz de identificar e tratar efetivamente uns 10% das perebas. O restante, ou o corpo resolve sozinho ou não resolve. Aí, aquilo que era mérito do velho e bom sistema imunológico, da medicina ou do término do ciclo de uma doença, acaba caindo como benfeitoria divina, intermediada por seus terráqueos representantes. Gratuitamente, é claro, porque a comissão de 10% não é para os homens e sim para ampliar as obras de Deus (que incluem nababescas casas em belos condomínios fechados onde moram alguns desses representantes) e causar mais efeito placebo. Salve, aleluia, salve!

É um negócio sensacional. Veja só: a pessoa está descontente com o médico. Ouve falar de que um pastor tal tem poder na palavra. Ela continua com o tratamento, mas vai ao culto. Quando fica bem, o mérito é 100% da igreja. Quando não, a culpa é do pobre doente que não teve fé o suficiente. Até porque, como sabemos, Deus não falha nunca. Isso sem contar o fato de que clínica paga imposto, igreja não.

Dito isso, devia ter agradecido, mas negado prontamente ao simpático atendente, explicando que médico e remédio são – no final das contas – uma solução mais barata.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.