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Leonardo Sakamoto

Classe média sofre: o que te irrita de verdade?

Leonardo Sakamoto

01/04/2013 19h27

Neste 1o de Abril, resolvi revisitar um post antigo, atualizando-o e deixando o final, digamos, mais direto.

Não me irrito com o fato de uma mulher ganhar menos que um homem exercendo a mesma função, com a mesma competência, na mesma empresa; Nem com o atropelamento de ciclistas e pedestres por conta da ignorância coletiva de uma cidade motorizada; Nem com o surgimento imediato de centenas de sem-teto após desocupações patrocinadas pela especulação imobiliária; Nem com ruralistas que tentam aprovar leis que promovem terra arrasada nas florestas do país; Nem com quem prega que índio é tudo bêbado e indolente, feito os "primos" deles, os bolivianos, que vêm emporcalhar a cidade; Nem com quem defende a justificativa de crimes passionais para atenuar um homicídio; Nem com pretensos deputados patriotas que acham que estão defendendo a nação ao passar a régua sobre direitos dos trabalhadores, rifando a qualidade de vida das futuras gerações; Nem com aquela gente fina que sobe o vidro do carro ao ver um negro pobre no cruzamento; Nem com amebas que acham que simplesmente tocar em uma pessoa com HIV positivo mata; Nem com juízes que concedem autorizações para que crianças com menos de dez anos trabalhem e defenestrem sua infância; Nem com autointitulados representantes do divino que adorariam ver mulheres que abortaram ardendo, não no inferno, mas por aqui mesmo; Nem com quem pensa que sonegar nada mais é do que fazer justiça fiscal com as próprias mãos; Nem com homens da lei que fazem bico de jagunços e tocam o terror, adubando o chão da Amazônia e da periferia de São Paulo com sangue; Nem com idiotas que espancam gays nas ruas porque não conseguem conviver com a diferença; Nem com pais e mães que acham que trabalho infantil enobrece o caráter; Nem com militares da reserva que ficam tomando chá da tarde com bolinhos de chuva, falando mal da democracia e arrotando tortura; Nem com o trabalho escravo e quem diz que ele não existe por lucrar com ele; Nem com filhinhos-de-papai que queimam índios, matam mendigos e estupram meninas por aí, pois sabem que ficam impunes; Nem com aquele pessoal funestro que prefere ver uma pessoa urrando de dor em uma cama de hospital ou sedada de morfina 24/7 do que lhe conceder o direito de finalizar a própria vida; Nem com empresários de sorriso amarelo que, na frente das câmeras, dizem que vão mudar o mundo e, por trás delas, poluem, destróem, exploram, enganam; Nem com administradores públicos que adotam políticas higienistas para expulsar os rotos e remendados das ruas das cidades; Nem com aqueles que consideram uma aberração um casal do mesmo sexo adotar uma menininha linda; Nem em quem bate em mulher porque acha que é homem.

O que me irrita, de verdade, e me tira do sério, são esses impostos altos que machucam os nossos sonhos de consumo.

PS: A nossa classe média é ridícula.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.