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Leonardo Sakamoto

Uma chacina mata sete no Rio. Mas quem se importa de verdade?

Leonardo Sakamoto

26/10/2013 10h56

Preste atenção nesta notícia:

Sete pessoas foram vítimas de uma chacina em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, na última quinta (24). Os assassinos, provavelmente milicianos vestidos de preto, portavam pistolas e fuzis e não foram identificados.

Leu? Pois bem, em alguns dias ou semanas você já terá a esquecido e nem vai ouvir falar sobre o caso porque ele acabou soterrado entre tantas outras mortes sem sentido nas grandes cidades e no interior do país.

Vez ou outra um caso é adotado pela mídia ou pelos movimentos sociais e se mantém vivo, servindo de símbolo contra a violência policial ou visando repudiar organizações criminosas. Essa adoção é justa, claro, mas não deve ser encarada como um fim para si mesma e sim um instrumento para alguma coisa. A busca por uma resposta no caso do desaparecimento, tortura e morte de Amarildo serve também como instrumento para fazer Justiça sobre os casos que vieram antes dele, além de garantir que não ocorram outros depois.

Porque há um rosário de gente assassinada ao lutar por seus direitos que permanece anônima. Como anônimo viveu e morreu este trabalhador da foto abaixo que, cansado de lutar contra a servidão que lhe foi imposta, fugiu da fazenda e acabou atingido e enterrado em uma vala comum. A mesma vala comum para onde vão as lideranças sociais ou pessoas comuns que estavam na hora errada e no lugar errado, mas que lá permanecem porque não houve ninguém a denunciar o seu paradeiro ou, mesmo havendo, não conseguiu-se obter a atenção da mídia e do poder público. Este sujeito, apelidado de "Negão Maranhense", não tinha documentação civil básica, não existia para o Estado. Nasceu e morreu como um fantasma – fantasma que não deixou de dar sua contribuição, pelo suor e pela pedra, ao desenvolvimento econômico da pecuária brasileira.

Nas últimas duas décadas, o Brasil bateu recordes na geração de empregos, reduziu a fome e a pobreza, manteve sua economia estabilizada, consolidou sua democracia. Tornou-se parte de um acrônimo (Brics), ganhou respeito internacional e começou a pavimentar seu caminho para se tornar a quinta maior economia do mundo – processos que, em maior ou menor grau, devem ser creditados aos governos que conduziram o país nesse período. Diante de um cenário de pujança como esse, pergunto-me porque o Brasil continua encontrando formas idiotas de matar seus filhos.

Pensávamos que não cometeríamos os mesmos tipos de "erros" de 20 anos atrás, mas não foi bem assim. Carandiru (1992), Vigário Geral (1993), Ianomâmis (1993), Candelária (1993), Corumbiara (1995), Eldorado dos Carajás (1996) ganharam roupagem nova e continuam acontecendo. Ou seja, o modelo se se manteve: continuamos matando gente pobre.

Nos últimos dez anos, o país assistiu a centenas de assassinatos de trabalhadores rurais indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários (e daqueles que ousaram os ajudar), massacres de sem-teto e população em situação de rua, mortes de homossexuais. Isso sem contar o genocídio de jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, como São Paulo.

Como em agosto de 2004, quando moradores de rua foram espancados no Centro de São Paulo, na região do Largo São Bento, Praça João Mendes e Rua 15 de Novembro. Sete não resistiram e morreram em decorrência dos ferimentos. Policiais militares e seguranças privados foram apontados como responsáveis, formando uma espécie de grupo de extermínio. Ou em maio de 2006, em que cerca de 500 pessoas, a maioria de jovens, negros, pobres e moradores de periferia foram mortos no Estado de São Paulo. O indícios apontam para policiais e grupos de extermínio ligados a eles como retaliação aos ataques do PCC.

Ou ainda a condição dos guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul, que enfrentam a pior situação entre os indígenas do Brasil, apresentando altos índices de suicídio e desnutrição infantil. O confinamento em pequenas parcelas de terra por conta do avanço do agronegócio no estado é uma das razões principais para a precária situação do povo. O Estado vem concentrando a maioria dos assassinatos de indígenas no país, boa parte delas diretamente relacionadas com a disputa pela terra. Mesmo em reservas já homologadas, os fazendeiros-invasores se negam a sair. E contam com a ajuda da segurança pública, a mando do poder público ou a soldo particular.

Como já disse antes, muitos policiais estão envolvidos com os crimes citados. Poderiam muito bem afirmar que estavam "cumprindo ordens", como os nazistas em Nuremberg. Pois, o que ocorreu em muitas dessas chacinas foi um servicinho sujo que parte de nós, "homens e mulheres de bem", desejavam (e ainda desejam) em seus sonhos mais íntimos: a "limpeza social" desde país das "classes perigosas" e dos entraves para o progresso. Vamos ser sinceros. Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar os culpados por todas elas como deveria. Ela simplesmente não faz questão.

A faxina social vai ocorrendo, dessa forma, escondendo os indesejáveis para dentro da vala comum. Pelas mãos do Estado ou de agentes privados. Talvez para não melindrar o "cidadão de bem", que não quer essa gente parda andando por aí, mas têm horror a cenas de violência.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.