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Leonardo Sakamoto

Em 2010, a campanha virou conclave. Em 2014, pode virar escolha de carrasco

Leonardo Sakamoto

05/12/2013 09h21

Um parlamentar com histórica atuação em defesa dos direitos humanos me confessou ontem, na Câmara dos Deputados, uma aposta para as eleições do ano que vem. Disse que, enquanto a campanha de 2010 foi algo como um conclave, em que parecia não estarmos escolhendo um presidente da República e sim um novo papa por conta dos temas alçados ao debate público, 2014 será o ano de enterrar os direitos humanos em discussões associadas à questão da segurança pública. Mais que em outros pleitos.

Ele não diz que os temas inspirados pelo sobrenatural não estarão presentes, pelo contrário. Mas que a grande estrela no atentado aos direitos humanos serão questões que explorem o medo da violência. E apontou a questão da redução da maioridade penal de 18 para 16, 14 ou até 12 – como se discute em corredores do Congresso Nacional – como o tema.

O parlamentar não acredita que nenhum dos quatro principais pré-candidatos até agora – Dilma, Aécio, Eduardo e Randolfe – irão abraçar um discurso mais conservador-religioso, apesar da influência de seus partidários e coligados. Pelo menos, não abertamente. Isso poderia depor contra uma imagem de modernidade e renovação que eles devem assumir para tentar conquistar o eleitorado.

E a Santa Inquisição, que reinou por aqui no segundo semestre de 2010, está diretamente relacionada a isso. Olha, eu que não creio, passei a acreditar no inferno naquela campanha. Você é favor do aborto!… Sua esposa já fez um aborto!… O candidato X vai para o inferno porque defende a eutanásia!… Você confirma que manterá todos os crucifixos que embelezam repartições públicas se for eleito?… Acredita em vida após a morte?… Duvida do poder da Grande Abóbora?

Uma pesquisa Datafolha feita, em abril deste ano, após casos envolvendo jovens em crimes violentos, apontou que 93% dos paulistanos apoiaria a redução da maioridade. Desses, 35% concordavam com a redução para uma faixa entre 13 e 15 anos e 9% para 12 anos. O que me surpreendeu, a bem da verdade, não foram os 93%, mas que ainda contávamos com 6% que não se deixaram levar pela histeria coletiva em momento de emoção a flor da pele (1% não opinaram).

Esse debate, infelizmente, tanto quanto o da campanha de 2010, que envolvia direitos individuais, saúde pública e religião, ainda é carregado de achismo e superficialidade.

Com o tempo, mantendo-se o tema em foco e ampliando a percepção de que a solução para crianças e adolescentes que cometem crimes é mais profunda e complexa do que simplesmente jogá-los na cadeia e esquecer a chave em algum lugar, tenho a esperança (palavra que, mais dia, menos dia, será cassada pelo pastor Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados), de que muita gente sairia do obscurantismo.

O problema é que, ao contrário do que aponta o senso comum, a campanha eleitoral não é o melhor momento para a discussão de temas públicos relevantes. Pelo contrário, é quando marqueteiros dobram a realidade, procurando mexer com a emoção e não a razão dos eleitores. Qualquer tema que seja visto com potencial de angariar ou tirar votos será tratado como um carro em anúncio de TV. E vendido como tal. Ou seja, a verdade sobre o objeto em questão é um mero detalhe.

Nesse sentido, tenho que reconhecer que deve ser obra do divino o fato de que plebiscitos não são usados a torto e direito por aqui. Porque a garantia dos direitos fundamentais não pode ser efetivada com base em pesquisas de opinião ou para onde sopra a opinião pública em determinado momento depois de um crime bárbaro.

Afinal de contas, uma democracia verdadeira passa pelo respeito à vontade da maioria, desde que garantindo a dignidade das minorias. Até porque, como sabemos, a maioria pode ser muito violenta. Como disse Oscar Wilde: "Há três tipos de déspotas. Aquele que tiraniza o corpo, aquele que tiraniza a alma e o que tiraniza, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. O primeiro é chamado de príncipe, o segundo de papa e o terceiro de povo"…

O melhor momento para discutir o tema seria ao longo de todo o ensino básico, com anos de reflexão em salas de aula, mas também em outros espaços comunitários e sociais, com pessoas preparadas para levantar junto aos jovens todos os pontos de vista, convidando-os a refletir sobre eles. Mas, apesar de direitos humanos ser tema transversal na educação, não tenho nenhuma fantasia de que isso ocorrerá no curto prazo.

Ué, não conseguimos nem combater a homofobia e promover a tolerância nas escolas que grupos de evangélicos e católicos (que envergonham os demais evangélicos e católicos) já começam a chamar tudo de "Kit Gay"! Como se fosse possível um material didático forçar uma orientação sexual. Imagina então com uma educação real para os direitos humanos? Iam queimar professores em praça pública…

Enfim, 2014 promete fortes emoções para quem acha que a dignidade por aqui anda muito maltratada.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.