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Leonardo Sakamoto

Rolezinho: os shoppings centers oferecem aos paulistanos realidade virtual

Leonardo Sakamoto

16/12/2013 18h33

"Tem de proibir esse tipo de maloqueiro de entrar num lugar como este."

A frase – registrada pela sempre presente Laura Capriglione, para a Folha de S. Paulo – é de uma frequentadora do Shopping Internacional de Guarulhos, revoltada com a chegada de centenas de jovens pobres que marcaram, via redes sociais, de se divertirem por lá no último sábado (14).

Antes de mais nada, tem que proibir esse tipo de pessoa que diz a frase acima de andar por aí, solta. Depois ela morde alguém e fica por isso mesmo.

Considerando que eles não roubaram nada, por que 23 deles foram detidos? Cor de pele? Trajes inadequados? Falta de comprovante de renda? Gosto musical? Se um princípio de arrastão ocorreu, como dizem algumas testemunhas, por que o shopping soltou uma nota afirmando que nada foi roubado?

Não precisa ser sociólogo para perceber que a molecada que marca esses encontros quer, acima de tudo, se divertir apenas. E, dessa forma, reafirmam sua existência. E mesmo alguns tumultos que possam causar têm a ver com isso. É como se gritassem a plenos pulmões: "Ei, eu existo, pô!" Boa parte dos jovens negros e pobres da periferia nascem e morrem diariamente sem que o Estado esboce um bocejo de preocupação ou que o restante da sociedade fique sabendo.

Os shoppings centers oferecem aos paulistanos realidade virtual. Meus amigos de Alphaville, ao criticarem os condomínios fechados em que cresceram, chamam esse tipo de estrutura de "bolhas". Um ambiente agradável, asséptico, sem pobreza, dor ou feiúra, com temperatura estável e luz na quantidade certa para possibilitar aquilo que fazemos de melhor: comprar.

Você que mora fora de São Paulo talvez não entenda a paixão avassaladora que nós, paulistanos, principalmente os de classe média, temos pelo shopping center. Matérias e mais matérias já foram produzidas sobre pessoas que não viveriam sem eles – não porque deles dependem para tirar o sustento, mas por terem escolhido suas luzes, vitrines, cinemas, restaurantes e academias como pano de fundo para suas existências. Gostando ou não gostando, oferecem a comodidade necessária para o nosso ritmo e fazem parte da nossa vida.

E melhor de tudo é a sensação de falsa segurança, no estilo "me engana que eu gosto". Shoppings oferecem a garantia de que nada vai acontecer com você se estiver lá dentro. Da mesma forma que cercas eletrificadas mentem sobre a proteção de casas, que carros blindados mentem sobre a proteção de famílias, que a presença de uma arma de fogo mente quando promete afastar qualquer risco real.

Mas nos esquecemos que ninguém vive apenas em suas casas, as pessoas – em algum momento – saem de seus carros e armas de fogo mudam de mãos tão rápido quanto uma cancela se abaixa atrás do veículo no estacionamento do shopping ou uma porta-automática se fecha. Em outras palavras, sentimento falso, pois não são cercas, chapas de aço ou armas que garantem segurança aos moradores de uma metrópole como São Paulo. É bom como efeito placebo, para se enganar, mas, mais dia ou menos dia, a bomba estoura.

Quando centenas de intrusos invadem essa realidade virtual, querendo fazer parte dela, seus usuários históricos sentem que ela se desligou de repente e entram em pânico. Porque essa horda de bárbaros talvez não entenda mas é exatamente deles que parte do povo que se refugia em shoppings quer fugir.

São Paulo tem mais de 11 milhões de habitantes, mas apenas uns poucos são efetivamente cidadãos, com acesso a todos os seus direitos previstos em lei.

Lembra a antiga Atenas, com uma ágora para uns poucos iluminados e o trabalho pesado para o grosso da sociedade, composta de escravos. Enquanto parte de nós aproveitam uma vidinha "segura" dentro de bons shoppings, clubes, restaurantes, boates e residenciais, outros penam para sobreviver e serem reconhecidos como gente. Deixa um escravo tentar ir fazer o que os cidadãos fazem na ágora para ver o que acontece, deixa.

E para piorar tudo, nós, jornalistas ajudamos a espalhar o pânico e o terror, construindo discursos para segregar ainda mais as "classes violentas" do restante dos "cidadãos de bem". Será que os colegas não percebem o que estão fazendo? Que parte de nosso medo idiota, embutido por uma sobreposição de discursos inflamados, visa nada menos do que a mais audiência?

No Brasil, de uma maneira geral, se você quiser viver em uma bolha a vida inteira, praticamente consegue. Tenho amigos que conhecem a Europa e os Estados Unidos, mas só irão à Itaquera pela primeira vez na Copa de 2014.

Essa ausência da cultura da alteridade leva ao medo e colabora com comportamentos e frases bizarras, revelando o lado mais sombrio da alma de cada um. O que é extremamente complicado porque o Brasil é composto majoritariamente por essa "gentinha pobre que nunca sabe como se portar em determinados ambientes".

Como já disse aqui, os produtos que consumimos são estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim. Construção essa que vem, não raras vezes, de cima para baixo. A busca pela felicidade passa cada vez mais pelo ato de comprar. E a satisfação está disponível desde que você tenha um cartão de crédito ou débito com saldo.

Trabalhamos tanto que, não raro, esquecemos como demonstrar afeto de forma sincera ou simplesmente não temos tempo para isso. Então, a fim de compensar nosso silêncio ou nossa ausência, nos tornando compradores e doadores de símbolos daquilo que não conseguiremos transmitir por vivência direta.

A "classe baixa com poder de compra mas ainda fora de patamares mínimos de dignidade", conhecida como "nova classe média", está alcançando a inclusão social através do consumo. A pessoa deixa de ser vista como uma ignorante completa, uma estrangeira, porque tem um tênis, um boné, um iPhone. Sendo que seria melhor que sua inclusão ocorresse via a garantia de serviços de educação, saúde, cultura e lazer de qualidade e as consequências positivas que isso traz.

Para piorar, estamos deixando muito claro aos mais jovens que eles não valem pelo que são, mas pelo que têm. Ou almejam. E ostentam.

Os shoppings oferecem um caminho fácil para tornar isso possível. Eles não são os culpados, mas fazem parte do processo. Enquanto isso, vamos feito gado, comprando bovinamente, sem questionar o que aquilo representa. Ou suas consequências para a cidade. Que vão além do aumento no trânsito ou de vagas de estacionamento.

Como diz o jurista e blogueiro Rodrigo Salgado, "aquelas caixas horrendas destinadas exclusivamente ao consumo se tornaram o único lugar com infraestrutura mínima para receber um largo contingente de pessoas. E o simbolismo disso é espantoso: em São Paulo (e em muitos outros lugares) o único espaço público que existe em quantidade minimamente suficiente para receber a população é privado e destinado ao consumo".

Do lado de cá, estou torcendo para a molecada cutucar os "cidadãos de bem" com outros "rolezinhos" pacíficos. Quem sabe, mais dia, menos dia, a bolha estoura?

Para ler em inglês, clique aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.