Topo

Leonardo Sakamoto

Cuidado com a gangue dos estragadores de fotos em museus

Leonardo Sakamoto

01/01/2014 10h52

Escrevi em minha página no Facebook que tinha arranjado um novo hobby: passar na frente de celulares no momento exato em que os maníacos por fotos de quadros de museu se acotovelam para conseguir um instantâneo de péssima qualidade de alguma obra famosa para mostrar aos amigos, via redes sociais, que ele ou ela estiveram lá.

Dado que o entendimento de ironia na internet é um milagre como multiplicar pães e transformar água em vinho, não me admira que muitos dos que reclamaram dessa atitude nefasta do blogueiro acharam realmente que eu estava gastando minha folga de fim de ano como um zumbi em exposições artísticas. Quaaaaaaaaadros… Quaaaaaaaaaadros….

Mas não nego que me estendi excepcionalmente em frente a algumas pinturas, ontem, ao ouvir uma moça reclamando que as "pessoas não tem mais respeito em museus", pois esta era a terceira vez que alguém ficava "apreciando" o quadro, impedindo-a de fotografar…

Ou seja, se você vai a museus para ver obras, fique em casa, seu imbecil.

Vou retomar algo que já escrevi aqui antes, até porque é Primeiro de Janeiro e nem eu, nem você deveríamos estar discutindo esse tipo de coisa hoje.

Mas será que as pessoas que visitam exposições fotografando compulsivamente tudo o que aparece pela frente, ziguezagueando feito uma barata que cheirou uma carreira de coca, realmente se lembram do que viram um mês depois? Ou conseguiram dialogar com o artista? Será que ao menos elas estavam lá?

Tempos atrás, puxei conversa com um desses espécimes. Ele não tinha ideia quem era o autor, mas sabia que a obra era famosa, então, flash! – e saiu correndo para outra. Walter Benjamin iria ter espasmos de alegria se visse a cena.

Se isso o faz feliz, ótimo. Seguir modelos e regras é um porre. Só não me convide depois para contar da sua viagem e empurrar, goela abaixo, uma sequência de fotos (mal tiradas) de pinturas e esculturas. "Tá vendo esse incompreensível borrão? É a Mona Lisa!"

Mas a visita tem um sentido diferente: é uma caça ao tesouro, cujo prêmio é poder mostrar, orgulhoso, ao colega de trabalho após as férias "tá vendo esse borrão disforme e irreconhecível? É daquele pintor que cortou a própria orelha fora". A tecnologia aliada ao fetichismo vai nos deixando malucos.

Um sábio amigo me lembrou que pior do que sair fotografando obras de arte de forma alucinada é gravar shows inteiros de música no celular. "O cara perde o show e depois tem um arquivo tosco para colocar no Youtube e ninguém (ele incluído) ver nunca mais", desabafou. Durante um show, fiquei curioso com uma moça que, braço estendido com o smartphone sobre sua cabeça, registrava tudo. De tempos em tempos, trocava o braço, provavelmente para fugir da cãibra. Ficava irritada se alguém pulava à sua frente. Afinal, o que achavam que era aquilo? Um show?

Enfim, capturar é mais importante que sentir em um mundo em que ter é mais relevante que ser. A impressão é que a memória vai sendo transferida, paulatinamente, da cabeça para cartões SD, tornando-nos cada vez mais dependentes deles para recriar nossas vivências.

O mesmo se aplica a viajar. Para muitos, conhecer uma nova realidade é ir ticando uma lista de ícones – "pronto, já vi" – derivados de guias simplistas ou matérias de turismo duvidosas que reforçam a caça ao tesouro. Sem considerar, é claro, uma vida inteira de bombardeio de padrões pela mídia, em programas de auditório ou comerciais de TV, que deixavam claro que se foi à Roma e não visitou o papa (mesmo que ache aquilo um porre), você não viu nada, é um pária social. Quantos são os que têm coragem de dizer não e fugir da manada? Quantos conseguem alterar a programação a qual foram submetidos por anos?

Ah, deixa de ser chato, japonês! É Primeiro de Janeiro. Ué, foi você que veio me visitar no blog em pleno feriado, então aguenta. E olha para trás antes de tirar uma foto em um museu. Os estragadores de fotos podem estar à espreita….

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.