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Leonardo Sakamoto

Partidos que não promoveram participação feminina devem perder tempo de TV

Leonardo Sakamoto

03/01/2014 17h57

A legislação determina que 10% da propaganda partidária gratuita seja destinada a difundir e promover a participação política feminina. Contudo, os partidos burlam essa meta, dando um jeitinho aqui e ali para não serem pegos, com justificativas que – às vezes – beiram o ridículo. Graças ao paciente trabalho de André de Carvalho Ramos, procurador chefe da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Ministério Público conseguiu convencer o Tribunal Regional Eleitoral a fazer cumprir a lei. Isso significa uma mudança no conteúdo e na forma das propagandas, mas também punições a quem deixou de seguir a lei 12.034/2009.

Ela prevê a perda de cinco vezes o tempo desvirtuado e, de acordo com a procuradoria, PMDB, PTB, PPS, PSDB, PV, PSC, PDT, PR, PT já foram processados e condenados no TRE desde 2012. Ou seja, em pleno ano de disputa política eleitoral, partidos devem perder tempo de sua propaganda partidária gratuita (não confundir com a propaganda eleitoral obrigatória) no primeiro semestre por não promover a participação política das mulheres.

"Houve partido, por exemplo, que afirmou cumprir a cota dos 10% por ter apenas mencionado em sua propaganda partidária os nomes de Hebe Camargo e Lucy Montoro. Outros alegaram que a voz da locutora ou narradora era feminina, o que seria suficiente para cumprir a lei, mesmo que o conteúdo não tivesse relação com a promoção da mulher na política. Houve ainda quem defendesse que não havia discriminação contra a mulher porque o seu partido tinha uma mulher como Chefe de Estado", afirma André de Carvalho, em entrevista a este blog.

"O sentido da lei é obrigar os partidos, em uma verdadeira ação afirmativa, a promover a participação política das mulheres e que não basta a mera aparição de figura feminina, sendo necessária a transmissão de conteúdo político pelas mulheres", completa.

Tempo de TV é  instrumento tão valioso que leva partidos a fazerem composições esdrúxulas apenas para aumentá-lo. Daí que, com a percepção de que as regras não são de brincadeira, o comportamento partidário tende a mudar. A batalha travada pelo MP tem surtido resultados. "Notamos que as propagandas mais recentes já incorporam a 'cota de 10%', o que demonstra que nossas ações de certo modo têm efeito pedagógico", explica André.

Os partidos políticos estão obrigados a dedicar 10% de seus tempos de propaganda partidária – aquela que, de tempos em tempos, aparece no seu rádio e TV fora do período eleitoral – a incentivar a participação da mulher na política. Por que? Apesar de ser importante uma mulher ocupar o mais alto posto do Poder Executivo, isso não é indicador de que temos um equilíbrio de gênero entre os atores políticos do país. Pelo contrário: elas são mais da metade da população do país, mas apenas 8,8% da Câmara dos Deputados e 14,8% do Senado. Isso sem falar de governadores, prefeitos, deputados estaduais e distritais e vereadores. Seria ótimo que o exemplo da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo fosse seguido por outros Estados.

Segue a íntegra da entrevista com André.

Blog do Sakamoto – Por que os partidos políticos ainda são "Clubes do Bolinha" no Brasil?
André de Carvalho Ramos – A situação atual dos partidos retrata o que ocorre na distribuição do poder na sociedade brasileira, que apresenta desequilibrio na perspectiva de sexo evidente. Basta lembrar do número ainda pequeno de mulheres na chefia de corporações privadas. Por outro lado, antes de iniciar o trabalho de inclusão eleitoral na Procuradoria Regional Eleitoral de Sao Paulo, tinha a expectativa de maior receptividade dos partidos políticos à questão de inclusão da mulher, até pelo pragmatismo: as mulheres são mais da metade do eleitorado brasileiro.

Contudo, hoje verifico que a situação nos partidos não difere muito das demais corporações: nenhuma mulher é presidente nacional de partido e, até 2012, a grande maioria deles sequer apresentava percentual mínimo (previsto em lei) de 30% de candidatas ao Legislativo. A conseqüência disso é devastadora para a representação política feminina: apenas 45 mulheres deputadas federais entre 513 membros da Câmara e 12 mulheres senadoras entre 81 membros do Senado. Consequentemente, os partidos que deveriam ser a vanguarda da alteração de comportamentos e líderes da inclusão dos diversos segmentos da sociedade ainda devem na área da participação feminina.

Você convenceu o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo a tornar efetiva a exigência de 10% do tempo de propaganda partidária ao incentivo à participação da mulher na política. Como conseguiu a façanha?
Em primeiro lugar, foi necessário superar uma interpretação dominante no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo sobre a falta de legitimidade da Procuradoria para questionar a propaganda partidária. Recorremos e ganhamos no Tribunal Superior Eleitoral. Depois, houve o paciente e quase invisível trabalho de preparação: a lei 12.034 de 2009 determina que 10% da propaganda partidária gratuita seja destinada a difundir e promover a participação política feminina. Não é fácil comprovar que os partidos descumprem essa regra. Eles utilizam rádio e televisão em várias inserções ao longo do semestre e, para aumentar a complexidade do trabalho de fiscalização, há a "quebra de praça": os partidos veiculam peças diferentes para as diversas regiões do Estado. Assim, tivemos que requisitar às empresas de rádio e televisão as mídias, depois verificar inserção por inserção, somando os tempos destinados à mulher para então aferirmos se o partido, somadas as inserções, havia cumprido a cota dos 10% no semestre.E isso feito para todos os partidos políticos com propaganda partidária no Estado, sem diferenciação entre os tidos como grandes ou pequenos. Tudo isso em um contexto típico de falta de estrutura suficiente dos órgãos de defesa da sociedade no Brasil.

Depois de proposta a ação, há o trabalho processual propriamente dito. Os partidos possuem excelentes escritórios de advocacia eleitoral, que se defendem e buscam evitar ao máximo a punição. Houve partido, por exemplo, que afirmou cumprir a cota dos 10% por ter apenas mencionado em sua propaganda partidária os nomes de Hebe Camargo e Lucy Montoro. Outros alegaram que a voz da locutora ou narradora era feminina, o que seria suficiente para cumprir a lei, mesmo que o conteúdo não tivesse relação com a promoção da mulher na política. Houve ainda quem defendesse que não havia discriminação contra a mulher porque o seu partido tinha uma mulher como Chefe de Estado. Esse debate entre a Procuradoria e os partidos políticos deu-se em um contexto de ineditismo: não havia casos anteriores nem jurisprudência para servir de baliza: as primeiras ações em todo o Brasil eram as nossas. Somos os pioneiros.Enfim, houve uma intensa luta processual em geral desconhecida pela sociedade e que desgasta bastante.

Por fim, conseguimos fazer prevalecer a tese de que a lei exige que os 10% da propaganda partidária sejam efetivamente usados para difundir e promover a participação política feminina, não bastando o uso de "narradoras" ou "locutoras" ou menções elogiosas a determinadas mulheres. Para a Procuradoria, o sentido da lei é obrigar os partidos, em uma verdadeira ação afirmativa, a promover a participação política das mulheres e que não basta a mera aparição de figura feminina, sendo necessária a transmissão de conteúdo político pelas mulheres. A cota de 10% representa um mínimo – pode o partido destinar bem mais para as mulheres. Ou seja, por trás de cada ação nossa no TRE de SP, há um trabalho intenso dos Procuradores Regionais Eleitorais – somos dois somente no Estado – e de toda a equipe de servidores e estagiários. Digo sempre que somos poucos, mas damos trabalho.

E por desrespeitarem a regra, os partidos perderão tempo de TV em suas inserções regulares de 2014 – ano eleitoral. Todos os partidos serão punidos? De quanto tempo de punição estamos falando?
A lei prevê a perda de cinco vezes o tempo desvirtuado. Se deveria ter utilizado 2 minutos (10% dos 20 minutos), perde 10 minutos no semestre seguinte. Desde 2012, início do nosso mandato na Procuradoria Eleitoral de São Paulo, houve condenações de diversos partidos. O PMDB, PTB, PPS, PSDB, PV, PSC, PDT, PR, PT foram processados e já foram condenados no TRE. Em 2014, a propaganda partidária ocorrerá somente no primeiro semestre, pois no segundo semestre há a propaganda eleitoral. Contudo, notamos que as propagandas mais recentes já incorporam a "cota de 10%", o que demonstra que nossas ações de certo modo têm efeito pedagógico.

Como espera que tema seja analisado no TSE? A interpretação dada aqui é também da Procuradoria Geral Eleitoral? Ou melhor: O MP tem esse entendimento unificado?
Sou testemunha da união dos Procuradores Regionais Eleitorais e da Procuradoria Geral Eleitoral em torno da inclusão eleitoral: acessibilidade das pessoas com deficiência, voto do preso provisório, respeito aos 30% da cota nas candidaturas proporcionais e agora observância da cota dos 10% da promoção da participação política feminina na propaganda partidária. Esperamos que o TSE – que até recentemente era presidido por uma mulher – mantenha o entendimento e a sensibilidade do TRE de São Paulo.

E esse entendimento poderá ser usado a respeito da subrepresentação de outros grupos no sistema político partidário, como negros?
Entendo que as políticas de ação afirmativa são importantes instrumentos temporários para acelerar a superação de barreiras históricas de subrepresentação na esfera política. E isso não é uma afirmação sem comprovação. Por exemplo, no caso da participação feminina, a ONU realizou estudo que provou o sucesso de cota de sexo nas candidaturas ao Legislativo: em 50 países que adotaram no passado cotas semelhantes, houve crescimento exponencial da participação feminina no Parlamento, como se vê na Argentina. Cabe ao Congresso estudar e aprovar novos instrumentos para os demais grupos subrepresentados atualmente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.