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Leonardo Sakamoto

Aos 80 anos, a USP poderia derrubar o muro que a separa da cidade

Leonardo Sakamoto

19/01/2014 10h41

Em matéria da Folha de S.Paulo, deste domingo (19), o novo reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antonio Zago, afirma que está disposto a discutir a forma de entrada na instituição, relativizando o peso do vestibular. Nada que permita aos alunos mais pobres realmente ocuparem a universidade pública mas, ainda assim, mudanças.

Que tal, então, aproveitar as comemorações pelos 80 anos da universidade e reabrir a entrada ao campus principal, que possui uma das maiores áreas verdes da capital, para os paulistanos aos domingos?

Para quem não conhece São Paulo, a USP possui uma imensa área verde, com praças e gramadões, enfim, um respiro na poluída e maltratada metrópole, com reduzidos espaços de convivência, que fica submersa no verão e coberta de fuligem no inverno.

Aprendi a andar de bicicleta nesse campus, localizado no bairro do Butantã. Minha vizinhança no Campo Limpo, bairro em que passei a infância e a adolescência, não possuía muito verde, para ser sincero, e se dependesse de aprender algo com aquelas ladeiras íngremes, seria um hábil corredor de carrinho de rolimã.

Assim como eu, muitos paulistanos, ricos e pobres, usavam o campus da capital para fazer um piquenique no final de semana, empinar pipa, jogar um futebolzinho ou aquela partida de taco, namorar, caminhar, tai-chi, correr atrás do próprio rabo, enfim, viver. Em outros tempos, era considerado um respeitado espaço cultural e de lazer tão importante quanto parques como o Ibirapuera ou o Carmo, com shows musicais e atividades esportivas.

Mas sob a justificativa de garantir a segurança de salas de aula, laboratórios e escritórios, a Reitoria da universidade restringiu o acesso do campus aos domingos.

Hoje, a USP possui um muro ao seu redor – um muro físico que não deixa de ser uma tradução de uma visão segregacionista. Os cidadãos comuns, que não têm acordos de uso do campus ou não são parte da comunidade de estudantes, professores e funcionários, acabam não podendo usufruir desse espaço público entre a tarde de sábado e o domingo – logo no momento em que teriam para descansar de uma semana de trabalho.

A discussão não é de hoje, mas antiga. Houve muitos protestos – ainda há. Mas a doutrina de segurança interna a todo o custo, deve ser bem forte porque vence sempre. Sempre ouço da boca de defensores de uma USP asséptica e árcade aos finais de semana que falta pessoal para garantir a integridade do patrimônio. E de que aquilo não é um local para se "divertir" e sim para "estudar" e "pesquisar", como se a vida fizesse mais sentido com três coisas conectadas. Depois perguntam porque tem gente com ojeriza à educação como ela é – mas isso é outra história.

Enfim, a preservação do patrimônio em primeiro lugar, depois a qualidade de vida da população.

Passei quase 15 anos da minha vida na USP, seja estudando, pesquisando, dando aula, atuando em projetos de extensão universitária e nunca engoli essa história. Contratem mais gente para garantir o "patrimônio", mude-se a visão do que é a USP e a quem ela pertence. Caso contrário, a universidade continuará depondo contra o maior patrimônio de um país, que é a dignidade e felicidade de sua população – o que inclui o sagrado direito ao descanso e ao lazer. Mantida com uma parcela do ICMS que todos pagam, inclusive o pessoal mais pobre dos bairros do entorno.

A USP possui um muro alto ao seu redor para impedir a horda de bárbaros de entrarem. O campo de força que envolve o campus é tão forte que a  ciclofaixa, que segue pela avenida que dá acesso ele, chegando a alguns metros do seu portão, vira a direita, sem adentrá-lo, levando as pessoas para longe da universidade depois de pedalarem tanto em direção a ela. Isso é simbólico do nosso país e da forma como a nossa elite intelectual, do qual não me excluo, relaciona-se com o mundo. A USP é um orgulho para a nação e aos domingos você poderá contemplá-la de bicicleta. De longe, é claro.

Foi importantíssima a conquista popular pela desapropriação de uma área verde na rua Augusta, Centro de São Paulo, para a criação de um parque, enterrando os planos da iniciativa privada de emparedar mais concreto por lá.

Simbolicamente, a abertura do campus da USP no Butantã aos domingos é uma causa tão importante quanto a do parque da Augusta, pois beneficiaria as comunidades pobres e com poucos espaços de convivência do entorno e seria um passo para derrubar alguns tijolos desse muro que separa a universidade do povo de São Paulo. Mas isso interessa a quem?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.