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Leonardo Sakamoto

"Chacina de Unaí" completa dez anos sem julgamento de todos os acusados

Leonardo Sakamoto

28/01/2014 01h16

Brasília – A Chacina de Unaí completa dez anos nesta terça (28) sem que os acusados de serem os mandantes do crime tenham ido a julgamento.

Em 28 de janeiro de 2004, quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram assassinados enquanto realizavam uma fiscalização rural de rotina na região de Unaí, Noroeste de Minas Gerais. O motorista Aílton Pereira de Oliveira, mesmo baleado, conseguiu fugir do local com o carro e chegar à estrada principal, onde foi socorrido. Levado até o Hospital de Base de Brasília, Oliveira não resistiu e faleceu no início da tarde. Antes de morrer, descreveu uma emboscada: um automóvel teria parado o carro da equipe e homens fortemente armados teriam descido e fuzilado os fiscais. Erastótenes de Almeida Gonçalves, Nelson José da Silva e João Batista Soares Lages morreram na hora. O caso ganhou repercussão na mídia nacional e internacional.


Ato em frente ao Supremo Tribunal Federal, na manhã desta terça (28), exigindo que os acusados de serem os mandantes sejam julgados pela Vara Federal de Belo Horizonte. Organizado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, o ato teve 10 mil balões lançados ao ar

A Polícia Federal afirmou ter desvendado o crime seis meses depois, com o indiciamento de envolvidos, que incluíram os irmãos Norberto e Antério Mânica, família que é uma das maiores produtoras de feijão do país. O inquérito entregue à Justiça afirmou que a motivação do crime foi o incômodo provocado pelas insistentes multas impostas pelos auditores. Nelson José da Silva seria o alvo principal. Ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em infrações à fazenda dos Mânica por descumprimento de leis trabalhistas. Ambos chegaram a ser presos, mas hoje respondem ao processo em liberdade. Após isso, Antério foi eleito (em 2004, com com 72,37% dos votos válidos) e reeleito (2008) prefeito de Unaí.

Também foram envolvidos os pistoleiros Erinaldo de Vasconcelos Silva (o Júnior), Rogério Alan Rocha Rios e William Gomes de Miranda; o contratante dos matadores, Francisco Élder Pinheiro (conhecido como "Chico Pinheiro", já falecido) e os intermediários Humberto Ribeiro dos Santos, Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro.

Em agosto do ano passado, três pistoleiros contratados para a matança foram julgados e, na madrugada do dia 31 de agosto, considerados culpados por um júri popular em Belo Horizonte. No dia 17 de setembro, ocorreria o início do julgamento de mais um grupo de acusados, incluindo Norberto Mânica.

Contudo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello suspendeu o julgamento, atendendo a um pedido dos advogados desse acusado, que tentam levar o júri para Unaí. Marco Aurélio quer que o STF decida qual cidade deve abrigar o júri de Mânica.

O Superior Tribunal de Justiça já havia decidido, em abril, que a "Chacina de Unaí" seria julgada em Belo Horizonte. O ministro relator Jorge Mussi considerou procedente uma reclamação do Ministério Público Federal e afirmou que a criação de uma Vara Federal em Unaí, local dos assassinatos – usada como justificativa para transferência do julgamento pela juíza federal Raquel Vasconcelos Alves de Lima – não importaria para o caso. Segundo ele, a criação de nova vara com jurisdição sobre o município onde se deu a infração penal não implica em incompetência do juízo em que se iniciou a ação penal. De acordo com o STJ, a decisão da juíza – que em janeiro havia remetido o caso para Unaí – foi contra as decisões anteriores já tomadas pelo próprio tribunal, que havia confirmado o caso para Belo Horizonte, e cassou sua decisão.

Durante o debate sobre a admissibilidade dos embargos infringentes da ação penal 470, o chamado "Julgamento do Mensalão", o ministro Marco Aurélio Mello fez um duro discurso em nome da responsabilidade do STF diante da opinião pública: "Estamos a um passo de desmerecer a confiança que no Supremo foi depositada". E também afirmou: "Como servidor do meu semelhante, eu devo contas aos contribuintes".

PEC do Trabalho Escravo –  Por conta da morte dos quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego, em 2009, o 28 de janeiro se tornou o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, através de proposta do então senador José Nery.

E a ligação entre a chacina e o trabalho escravo contemporâneo não reside apenas na data escolhida para uma homenagem aos auditores.

Em 2oo4, a votação em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional que prevê o confisco de propriedades flagradas com escravos e sua destinação à reforma agrária ou a programas de moradia urbanos ocorreu sob a forte comoção pública gerada pelo assassinato dos quatro funcionários do MTE.

Isso influenciou na decisão dos deputados, que aprovaram o texto. Parlamentares que eram contrários à aprovação da PEC, na votação em plenário, feita por voto aberto, posicionaram-se a favor, provavelmente para não terem sua imagem vinculada à manutenção dessa forma de exploração do trabalho em um momento delicado como aquele, em que a Chacina ainda aparecia na mídia internacional. Tanto que, após o primeiro turno na Câmara, não foi possível colocar a matéria para a segunda votação devido à ação de deputados da bancada ruralista.

Após oito anos de pressão de governo federal, parlamentares favoráveis à proposta, sociedade civil, sindicatos, artistas e intelectuais e algumas entidades que reúnem empresas, conseguiu-se aprovar a PEC do Trabalho Escravo em segundo turno na Câmara, em maio do ano passado, e a pautar o tema no Senado.

Os contrários à ideia, porém, bateram o pé: a PEC só seria colocada em votação pelos senadores caso uma regulamentação fosse discutida antes, a fim de ser aprovada logo após a votação da PEC. Ou seja, se os termos e procedimentos para o confisco fossem colocados no papel. Até aí, tudo bem. Mas, no meio do caminho, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator do projeto de lei para a regulamentação, atendeu ao pedido da bancada ruralista e usou um conceito diferente de trabalho escravo do que aquele que está no artigo 149 do Código Penal. Uma definição mais restrita.

De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).

A legislação brasileira, pasmem, é de vanguarda, pois considera que quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, também está caracterizado o trabalho escravo. Vira e mexe ouve-se o argumento de que fiscais do trabalho consideram como trabalho escravo a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis, o que não é verdade.

Há até um manual do Ministério do Trabalho e Emprego explicando o que é e o que não é trabalho escravo, reunindo as normas e instruções normativas a respeito, que estão acessíveis a todos os empresários para download na internet. Para lê-lo, basta clicar aqui. Mas a bancada ruralista afirma que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo, porque não concorda com o conceito brasileiro.

Mais de 3 mil propriedades foram fiscalizadas por denúncias de trabalho escravo desde 1995, quando o Brasil criou o seu sistema de combate ao crime. O país tem mais de 4,5 milhões de propriedades rurais. Mais de 45 mil pessoas ganharam a liberdade desde então, em um universo de quase 18 milhões de trabalhadores no campo. Se a grande maioria de empresários, no campo e na cidade, segue a lei e não utiliza trabalho escravo, a quem interessa tornar a legislação mais frouxa? A quem interessa proteger quem promove a concorrência desleal e o dumping social, cortando custos ilegalmente para ganhar competitividade através da exploração de seres humano? E, de lambuja, manchar o nome dos nossos produtos no exterior?

Governo federal e parlamentares estão atuando para corrigir a proposta de regulamentação deturpada do senador Romero Jucá após a aprovação da PEC do Trabalho Escravo, para que a medida não se torne um ovo de serpente. Poucas vezes a aprovação de uma medida tão simples representou tanto simbolicamente. É só uma regulamentação, mas nela repousa a luta entre o respeito à dignidade humana e a barbárie.

Da mesma forma que a punição aos mandantes do crime cometido há dez anos é mais do que Justiça. É a certeza de que temos um Estado que protege a dignidade de todos acima dos interesses econômicos de alguns.

Em novembro de 2008, Antério Mânica foi um condecorados com a Medalha da Ordem do Mérito Legislativo, em cerimônia promovida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, realizada no Palácio das Artes e "aplaudida por mais de mil convidados", como explicou o site da própria instituição. O prêmio, que foi considerado por muitos como um desagravo, gerou indignação e mal-estar em parte da sociedade civil e dos deputados mineiros.

A impressão que fica é de que a velocidade de funcionamento de grande parte do sistema judiciário continua dependendo de quem é o réu/acusador. Se for rico, será rápido (se ele quiser que seja rápido) ou lento (se quiser que seja lento) e tende a ser julgado conforme suas conveniências, antes ou depois dos demais acusados e no lugar que melhor lhe aprouver (se assim for melhor para sua defesa). Se for pobre ou se pobres forem os assassinados, a Justiça faz o caminho inverso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.