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Leonardo Sakamoto

Dos jornalistas para o governo: Perdoa-me por me sangrar!

Leonardo Sakamoto

07/02/2014 11h09

Será que nós jornalistas preenchemos tão bem assim o papel de gado para abate que não conseguimos nos mobilizar em nenhuma circunstância?

Será que realmente nos consideramos melhores do que os outros trabalhadores? Ou, quiçá, nos sentimos travestidos de alguma estúpida missão, flanando acima do bem e do mal, fazendo de conta que não é com a gente?

Porque tão intolerável quanto um manifestante ser agredido covardemente sem ter feito absolutamente nada para colocar em risco a vida de outras pessoas, é um jornalista levar cacetada quanto está tentando registrar e transmitir uma história. Sejam eles da mídia convencional ou alternativa, seja pelas mãos da polícia, seja pelas de manifestantes.

Até porque, conforme mostram os registros dos colegas, parte dos ataques não são acidentes. Pelo contrário, alguns policiais sabem muito bem o que estão fazendo. O que só torna a situação pior, uma vez que eles não estão atacando apenas o trabalhador que está lá, mas impedindo que a população saiba o que está se passando. É censura perpetrada através de violência de Estado.

Nesta quinta (6), um cinegrafista da TV Bandeirantes sofreu afundamento de crânio atingido por um artefato explosivo em um protesto no Rio de Janeiro. Investiga-se a origem do petardo.

Um repórter, aqui do UOL apanhou da polícia militar mesmo após ter se identificado. Desde as manifestações em junho do ano passado, já tivemos colega que ficou cego, outros gravemente feridos, há os que foram espancados e ficaram dias presos.

Kátia Carvalho /Agência O Globo

Cinegrafista da Band é atingido em manifestação. Kátia Carvalho /Agência O Globo

Na esmagadora maioria das vezes, foram policiais, os causadores de dano.

Mas independente da mão que arremessou algo ou espancou, se do lado da polícia ou dos manifestantes (há idiotas em todo o lugar), a responsabilidade final é do poder público que não consegue atuar decentemente em protestos e aglomerações para além de meter bala, bomba e cacetada, criando um ambiente de guerra em que tudo pode acontecer (em negrito, para facilitar o entendimento). Policiais despreparados, falta de comando, ordens bizarras, enfim, o governo tem tentado controlar o fogo jogando álcool.

Depois crucifica-se apenas o agente policial ou o manifestante pelo ocorrido, quando os maiores responsáveis estão longe dali.

Ou melhor, clima de guerra, não. Já cobri mais de uma vez conflitos armados fora do país e o Brasil e nunca vi nada parecido.

Isso sem contar que os empregadores deveriam oferecer equipamentos de proteção individual, como prevê a legislação trabalhista, que neste caso incluiria, colete, máscara e capacete, e treinamento para situações de conflitos urbanos. E rechaçar o que está acontecendo em seus editoriais com mais veemência do que as envergonhadas notas de repúdio emitidas até agora.

Mas, apesar disso ajudar e muito, isso é paliativo. O contexto precisa mudar.

Em outras profissões, teríamos protestos ou uma ação coletiva mais forte para denunciar o que está acontecendo. Talvez até cruzaríamos os braços. Por aqui, abaixamos a cabeça e torcemos para que, na próxima vez, não seja conosco – assumindo o mesmo padrão que adotamos quando uma demissão coletiva assola um veículo de comunicação sem que, antes, patrões e empregados tenham conversado para checar se essa era mesmo a única saída. Abaixar a cabeça. Feito um avestruz.

Como profissionais cuja função é cobrar o poder público não conseguem sair desse estado de catatonia? Não é uma questão de posicionamento político, ser a favor ou contra manifestações. É liberdade de expressão!

Pois, com exceção das insistentes cobranças da sempre alerta Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e de alguns sindicatos, grupos de jornalistas independentes, colegas que são grilos-falantes em redações e chefes que fazem a diferença, parece que estamos passando o seguinte recado, no melhor estilo de Nelson Rodrigues: "Perdoa-me por me sangrar!"

É ano de eleição. Ao menos, tenhamos dignidade de relatar à exaustão o que está acontecendo, listando responsáveis diretos e indiretos, a fim de que cada cicatriz deixada nos colegas seja devidamente deduzida do patrimônio eleitoral dos mandatários e de seus indicados em outubro.

Ou a gente só é impávido quando é com os outros?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.