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Leonardo Sakamoto

Marcha à ré da Família com Deus em nome do Passado

Leonardo Sakamoto

13/03/2014 16h47

Recebi cartas dos leitores (mentira, foi e-mail – mas já pensou que legal se todos os comentários do blog, inbox do Face, DMs do Twitter e demais correios eletrônicos chegassem por cartinha? Eu ia mergulhar nelas feito o Bozo quando sorteava aqueles LPs cujas capas eram produzidas no Playcenter) pedindo um post sobre grupos que estariam organizando uma nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade para o sábado (22).

O objetivo desse pessoal seria marcar os 50 anos daquela excrescência que antecedeu ao golpe militar de 1964. Em defesa da fé, da família e da pátria.

Agregam valor ao camarote colocando uma série de reivindicações que eles, equivocamente, chamam de "conservadoras". Pois uma coisa é o pensamento conservador, que merece ser respeitado e, na minha opinião, questionado – quando for o caso – nas arenas de discussões. A outra é gente que acha que a Constituição é papel higiênico e as instituições democráticas – que levamos décadas para reconstruir – são um grande vaso sanitário de onde só exala fedor.

Reivindicações que incluem uma "intervenção militar constitucional" (haha), o bloqueio da transformação do país em uma "ditadura homossexual" (hahahaha) e uma ação para evitar a "implantação do comunismo" pelo partido que está no poder (kkkkkkkkkk). Gente, em que país eles vivem?

Eu olhei, olhei e pensei que era uma piada. Ainda espero que seja um grande hoax.

Portanto, gostaria de analisar não o chamamento para a marcha em si e mais a reação dos que estão apoiando essas ideias.

Antes de tudo, um comentário sincero: como a democracia é linda…

Ainda vou escrever com mais calma sobre esse assunto, mas sabe o que mais assusta? A falta de conhecimento histórico. Qualquer análise de conjuntura e de contexto histórico, não só brasileiro mas de todo o mundo, mostra que 1964 e 2014 são dois momentos diferentes, com acúmulos políticos e participação popular diferentes também.

É claro que há insatisfações naquela época como agora, e de todos os lados. Insatisfação contra o mau funcionamento das instituições (corrupção, enfim), mas também insatisfação de alguns contra a conquista de direitos por determinadas parcelas da sociedade que, sistematicamente, foram deixadas à margem (direito a não passar fome, por exemplo).

Mas o país é diferente, poucos são os que querem engatar a marcha à ré. As pessoas repetem comparações ruins ("no passado, tinha mais segurança e menos corrupção") até terem contato com os números e a realidade. Isso sem contar que a imprensa, hoje, é muito mais livre para divulgar os casos de malfeitos – coisas que era impossível durante a Gloriosa. Ou seja, as possibilidades de quebra institucional não são as mesmas.

Li um panfleto que dizia que o PT está rompendo com o capital, criando problemas para bancos. Gente do céu… Se assim fosse eu ia para a rua cantar debaixo da chuva. O fato é que esse milagre não vai acontecer nem que a vaca tussa. Nunca o sistema financeiro nacional e internacional ganhou tanto dinheiro quanto agora. Boa parte do PT nem mais é de esquerda, que dirá comunista ou "revolucionário".

Enfim, não é para ninguém entrar em parafuso. Uma nova "intervenção" ou qualquer eufemismo que possa ser dado a um golpe cívico-militar são despropositados.

Uma das maiores consequências das manifestações de junho de ano passado foi trazer pessoas para ocuparem espaços públicos e darem suas opiniões. Ruas,praças e avenidas não são apenas rotas de passagem de pedestres e automóveis, mas é onde se faz política e se exerce a cidadania.

Eu adoraria que todo mundo que posta contra a democracia fosse defender suas posições de cara limpa, mas infelizmente isso não vai acontecer. As marchas, se ocorrerem, vão juntar menos gente do que manifestações do ano passado.

Pois é importante que a extrema direita mostre sua cara e diga quem é. Você não está cansado de ser xingado por anônimos na internet? Não tem curiosidade de saber quem eles são? Pois bem, essa é a hora. Que venham e defendam seus argumentos com fatos e não misticismos.

Talvez, dessa forma, possamos ir para o debate construtivo ao invés da troca de ofensas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.