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Leonardo Sakamoto

Na sua opinião, qual "tipo de mulher" pode apanhar?

Leonardo Sakamoto

02/04/2014 09h08

A Lei Maria da Penha se aplica ao caso de agressão do ator Dado Dolabella contra a atriz Luana Piovani. É o que decidiu, nesta terça (1), o Superior Tribunal de Justiça, de acordo com a coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo.

No ano passado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro havia concluído que o ator – agraciado pelo telespectador brasileiro com R$ 1 milhão ao ganhar o humorístico A Fazenda, mesmo depois de agredir sua ex-namorada Luana Piovani – não podia ser julgado pela lei, que trata de violência doméstica.

A decisão, atendendo a recursos do réu (número 0376432-04.2008.8.19.0001), anulou a pena em regime aberto, declarou a incompetência do Juizado da Violência Doméstica e Familiar para analisar o caso e remeteu o processo a uma vara criminal.

De acordo com o relator do caso no TJ-RJ, "é público e notório que a indicada vítima nunca foi uma mulher oprimida ou subjugada aos caprichos do homem" e não conviviam em uma relação de afetividade estável com o réu. E, por ser atriz renomada e o local da agressão, em 2008, não ser um ambiente doméstico (era uma boate), Luana "não pode ser considerada uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade".

O STJ reverte a decisão do tribunal carioca, considerando que a lei vale para qualquer mulher, independentemente de sua condição física e social ou do local da agressão. Ou seja, não há distinção entre as que podem e as que não podem apanhar.

Ele não deverá cumprir pena porque, com todo o tempo de trâmite do processo, ela já prescreveu.

Isso é um alento. Pois alguém acha que um agressor considera que o fato de a mulher ser socialmente respeitada e poderosa é fator de dissuasão na hora de violentá-la por qualquer motivo? Bem pelo contrário: temos registros e mais registros de homens que do alto de sua incapacidade de conviver com uma companheira mais bem sucedida que ele, financeiramente por exemplo, passa a atacá-la. Verbalmente. Psicologicamente. Fisicamente. E quantas mulheres que são vistas como fortes publicamente, calaram-se entre quatro paredes, por processos que retomam a forma repressora com a qual foram criadas ou por medo?

Em 2009, Dolabella chegou a ser preso por desrespeitar decisão judicial que o obrigava a não se aproximar de Piovani. Sobre isso, o diretor de TV José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, escreveu na época: "Vamos supor que o Dado esteja mastigando um delicioso atum no Sushi Leblon e, repentinamente, entra a Luana. O que deve ele fazer? Fugir dali, correndo, sem pagar a conta? Ou ainda ir para debaixo da mesa, chamar o garçom, explicar a situação, cobrir o rosto com um guardanapo e sair de fininho?".

Sim, exatamente. Mas esse tipo de pensamento é premiado por aqui. Dolabella ganhou um reality show. Boni foi homenageado por uma escola de samba,  neste último carnaval, no Rio de Janeiro.

Mulheres são vítimas de violência doméstica e no trabalho, enfrentam jornadas triplas (trabalhadora, mãe e esposa), não têm direito à autonomia do seu corpo – que dirá de sua vida, pressionadas não só por pais e companheiros ignorantes mas também por uma sociedade que vive com um pé no futuro e o corpo no passado. A qual todos nós pertencemos e, portanto, somos atores da perpetuação de suas bizarrices.

Discutimos muito sobre as mudanças estruturais pelas quais o país deve passar, citando saúde, educação, transporte, segurança, mas não podemos esquecer a violência de gênero. Que não conhece classe social, cor ou idade. Mulheres que são maioria numérica – e minoria em dignidade efetiva.

Fico me perguntando se um povo que premia um agressor de mulheres tem moral para reclamar de corrupção na política ou de qualquer outra coisa.

Do ponto de vista de impacto para a sociedade, qual a diferença da decisão do TJ-RJ e a de um juiz de Sete Lagoas (MG), que disse, ao rejeitar punições baseadas na Lei Maria da Penha: "Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!"(…) Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões."

Em 1983, o ex-marido de Maria da Penha atirou nas costas da esposa e depois tentou eletrocutá-la. Não conseguiu matá-la, mas a deixou paraplégica. Muitos anos de impunidade depois, pegou seis anos de prisão, mas ficou pouco tempo atrás das grades. A sua busca por justiça tornou-a símbolo da luta contra a violência doméstica. A Lei Maria da Penha, aprovada em 2006 para combater a violência doméstica contra a mulher, sofre constantes ataques desde que foi criada. Interpretações distorcidas de juízes, falta de orçamento para colocar políticas de prevenção em prática, tentativas de diminuir a força dessa legislação.

A Lei Maria da Penha estabelece que todo o caso de violência doméstica é crime, proíbe a aplicação de penas de multa e pagamento de cestas básicas aos agressores, amplia a pena de um para até três anos de prisão e determina o encaminhamento das vítimas a programas e serviços de proteção e de assistência social. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal decidiu que um agressor pode ser processado por violência doméstica mesmo que a vítima não apresente queixa ou a retire. Isso deixou muita gente tosca irritadíssima com uma suposta "interferência do Estado na vida privada".

Afinal de contas, quem esse tal de STF pensa que é? Eu bato na minha mulher/filha/mãe/irmã na hora que quiser e com o objeto que quiser.

As pessoas envolvidas em casos de violência contra mulheres colocam em prática o que devem ter ouvido a vida inteira: quem não se enquadra em um padrão moral que nos foi empurrado – e que não obedece à hegemonia masculina, heterossexual e cristã – é a corja da sociedade e age para corromper o nosso modo de vida e tornar a existência dos "cidadãos de bem" um inferno. Seres que nos ameaçam com sua liberdade, que não se encaixa nos padrões estabelecidos pelos "homens de bem".

Como Dado Dolabella. Um genro que muita mãe e muito pai pediram a Deus.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.