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Leonardo Sakamoto

Legalizar a maconha. Ou proibir álcool, tabaco, gordura, açúcar e St. Remy

Leonardo Sakamoto

26/04/2014 10h44

– Batata frita. Onion rings. X-Salada. X-Bacon. X-Egg-Bacon-Salada. Dogão com cheddar. Milkshake com caramelo. Refrigerante. Guaraná Jesus. Suco de caixinha. Coxinha. Risoles. Bolovo. Enroladinho de queijo e presunto. Salame. Copa. Costelinha de porco. Feijoada. Bife à parmegiana. Picanha com farofa. Porção de calabresa. Frango a passarinho. Torresmo. Ovos com bacon. Joelho de porco. Cupim casqueado. Leitão a pururuca. Virado a paulista. Dobradinha. Sarapatel. Barreado. Maniçoba. Vaca atolada. Moqueca baiana. Acarajé. Salada russa. Polpetone. Lasanha. Pizza de quatro queijos com borda de catupiry. Fogazza. Pastel especial com ovo. Rosca recheada de linguiça. Pudim. Bolo de chocolate. Brownie. Donut. Bomba. Sonho. Biscoito recheado. Waffle. Salgadinho. Ovinho de amendoim. Amendoim japonês. Paçoca. Doce de leite. Churros com doce de leite. Bombom de cupuaçu. Bombom recheado com licor de cassis. Cerveja. Cervejinha. Chope. Caracu com ovo. Cachaça. Tequila. Vodka. Uísque com gelo. Uísque sem gelo. Licor de jenipapo. St. Remy (o horror, o horror…). Campari. Martini. Bebida que Pixxxca. Caipirinha. Caipiroska. Cosmopolitan. Marguerita. Kir Royal. Bombeirinho. Cigarro. Cigarro de palha. Charuto. Cigarro de cravo…

– E maconha?

– Nunca! Meu corpo é um templo.

Postei a pequena provocação acima tempos atrás. Na época, gerou comoção. Aliás, um dia ainda vou entender os mecanismos que geram comoção e dominar o mundo como o Pinky e o Cérebro. Pois não entendo como a brincadeira pode ter gerado tanta polêmica: o ser humano vai e se entope de álcool, tabaco, gordura, açúcar refinado e St. Remy e depois acha que fumar maconha é que vicia e leva ao apocalipse?

Uma das coisas que mais me deixa frustrado é a hipocrisia diante do debate sobre as liberdades individuais e o uso de substâncias químicas. Neste sábado (26), em que a Marcha da Maconha é realizada em São Paulo, nada mais pertinente do que resgatar um pouco dessa nossa hipocrisia.

Daqui a 100 anos, nossos netos vão olhar parar trás e sentir perplexidade por conta de nossa estúpida política antidrogas e vergonha alheia pela maioria de nós aceitar bovinamente tudo isso, sem refletir sobre o tema, apenas repetindo preconceitos que ouviram na TV como um papagaio pirado.

Sim, porque boa parte das pessoas que proferem à exaustão argumentos contrários à legalização da maconha não fazem ideia do que estão falando. Repercutem discursos de medo e pavor que lhes são incutidos desde cedo e que ajudam a endossar coletivamente essa política e os sistemas que lucram com elas.

Política que é usada para justificar a intervenção em outros países, que enche prisões com jovens que vendem maconha, que fomenta o comércio ilegal de armas, que sustenta a corrupção policial, que é usado para fomentar o medo e, daí, o controle sobre determinadas classes sociais. Uma política que vê a dependência química como ato criminoso e não uma questão de saúde pública e mantém uma ditadura imbecil sobre o corpo do indivíduo.

"Claudia, a faxineira que morreu baleada pela polícia do Rio e cujo corpo foi arrastado na viatura, morreu em decorrência da guerra às drogas. O Amarildo desapareceu em decorrência à guerra às drogas. Essa guerra tem vitimado pessoas das periferias, em especial as pessoas negras", afirmou o deputado federal Jean Wyllys, em entrevista a este blog."A maconha já é liberada. Liberada no sentido que ela está livre de qualquer controle, qualquer fiscalização, qualquer regulamentação. Uma criança de dez anos que queria, consegue fumar maconha. Você precisa legalizar para regulamentar a produção e o comércio."

Se a produção e distribuição fossem controladas e se as pessoas pudessem plantar um pezinho em casa, a violência relacionada à maconha cairia drasticamente. Mas, apesar de lógico, como não interessa a tanta gente graúda, simplesmente, não acontece.

Uma pessoa que usa maconha é um perigo para si mesma e para a sociedade? Faça-me o favor! Se assim fosse, não tinha médico atendendo em consultório ou fazendo cirurgia, cientista descobrindo curas de doenças, engenheiros planejando pontes e avenidas. Ou jornalista produzindo jornais, revistas, programas de TV, programas de rádio ou sites na internet.

Mudanças de comportamento causados por dependência química podem atingir todos os tipos de substâncias, das consideradas legais e as arbitrariamente consideradas ilegais. Mas nem por isso devemos proibir álcool, tabaco, gordura, açúcar refinado e, é claro, St. Remy.

Ironicamente, tendo em vista o sucesso econômico da legalização da maconha para uso recreativo em alguns estados norte-americanos (que continuaram existindo depois da mudança da lei, apesar do medo das carpideiras de plantão), é capaz de que o velho mercado seja uma das molas que impulsionem mudanças. Cair na mão de grandes corporações é melhor do que deixar na mão dos traficantes? Isso é uma falsa dicotomia, pois a legalização não significa necessariamente criação de monopólio, mas abre a possibilidade de produzir por conta própria. O que, aliás, será defendido na tarde deste sábado pelos manifestantes que vão se reunir no vão livre do Masp, na avenida Paulista, e seguir até a praça Roosevelt.

Toleramos ou até incentivamos que determinadas substâncias químicas sejam utilizadas para garantir a produtividade e a lucratividade de determinado empreendimento (cansei de presenciar em reportagens, ao longo dos anos, canteiros de obras e empreitas de derrubada de mata mantidas sob controle graças à distribuição de cachaça pelos contratadores). Ao mesmo tempo, condenamos seu uso recreativo, social ou espiritual.

Ficamos com pena de quem fuma crack para dar uma relaxada após cortar o equivalente ao peso de 15 Fuscas de cana no braço, contudo nos indignamos ferozmente com aqueles que ficarem altos e não gerarem riqueza. E que, ainda por cima, estragam a noite de ópera na Sala São Paulo.

Ou achamos bizarro e revoltante pessoas que usam anfetaminas e demais produtos que ajudam a atingir outros estados de consciência em festinhas. Mas achamos extremamente normal e até incentivamos que um exército de "homens e mulheres de bem" tomem bolinhas para se concentrar e trabalhar.

Isso sem contar aquele "incentivo" para conseguir finalizar aquele pescoção na redação ou o plantão médico. Quantos profissionais liberais não dependem de carreiras para a suas carreiras e depois criticam, abertamente, o uso de psicoativos?

Isso ainda está longe de você? Quantos maços de cigarro você fuma por dia quando o trabalho lhe consome mais do que o normal?

"Ah, mas tabaco é diferente da maconha." O princípio ativo, sim. Agora, o princípio social é o mesmo: Drogas são toleradas. Desde que te ajudem a ser aquilo que a sociedade espera de você: uma engrenagem produtiva.

Ou, como disse o antropólogo Maurício Fiore, autor de diversos trabalhos sobre uso de substâncias psicoativas e um dos maiores especialistas brasileiros no tema: "droga é aquilo que o outro usa".

Se você repete como papagaio um monte de ideias prontas sobre a maconha sem se atentar que pode ser estar sendo usado, apareça em uma das Marchas da Maconha que serão realizadas daqui até junho em vários cantos do país. E se não tiver pique, informe-se para além do que lhe é dito na escola, na igreja, pela mídia ou por sua família. A verdade é bem maior do que as histórias que te contam.

E, antes que eu esqueça, viva o Uruguai!

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.