Topo

Leonardo Sakamoto

Sem-teto são um bando de desocupados e ladrões? Sabe de nada, inocente!

Leonardo Sakamoto

08/05/2014 18h42

De todas as idiotices, uma das que mais me deixam possesso é o pensamento raso do "se me estrepei a vida inteira, todo mundo tem que se estrepar também".

Ele representa o melhor da filosofia "Para o Buraco, Eu Não Vou Sozinho", muito conhecida desde que o primeiro hominídeo andou de pé, tropeçou e, para não cair sozinho de bunda no chão, arrastou o companheiro junto. Filosofia que, a cada dia, vai se aprofundando em sociedades individualistas como a nossa.

Alguns dirão, com razão, que esta reflexão já foi feita aqui. Mas resolvi resgatá-la e atualizá-la dado que, nesta quinta-feira, protestos por moradia tomaram as ruas da capital paulista, ocuparam temporariamente edifícios de empreiteiras até que lideranças do movimento sem-teto acabaram sendo recebidas por Dilma Rousseff. Que ficou de analisar a desapropriação da ocupação Copa do Povo, distante três quilômetros do Itaquerão, e de  ampliar o acesso ao programa Minha Casa, Minha (dí)Vida. Ou seja, querem poder participar, pagar por seu imóvel.

São Paulo, bem como Rio de Janeiro e Brasília, entre outras, é uma cidade em que o metro quadrado disparou nos últimos anos, resultando em um processo de gentrificação que empurra as classes baixa e média ainda mais para a periferia, onde a estrutura é mais precária. Ou seja, os que mais necessitam de serviços e equipamentos públicos (ao contrário dos ricos, que podem pagar por eles) são aqueles que continuam tendo seu acesso negado.

Hoje, a idiotice do primeiro parágrafo foi repetida ad nauseam nas redes sociais. E, como já coletei e publiquei aqui anteriormente, com suas variações:

"Trabalhei a vida inteira e nunca tive uma casa própria. Agora, vem um bando de desocupado e invade um terreno para chamar de seu? A polícia tem que descer o cacete nesse povo para aprender que patrimônio só surge do suor e do trabalho."

Fantástico! Nem as pessoas que usam crianças ou os donos de terrenos improdutivos seriam tão virulentos assim. Nada como uma sociedade doutrinada para servir de cão de guarda, não?

Já eu prefiro esta versão mais sincera:

"Se eu sou um covarde e não tenho coragem de lutar pelo que acredito ser uma vida digna, permanecendo na ignorância (que é um lugar quentinho) e preferindo ruminar silenciosamente entre os dentes a minha infelicidade, quero que o mundo faça o mesmo."

Sofrer não é o único caminho para a salvação e até me mostrarem que há algo depois que o coração para de bater, não estamos penando neste mundo para acumular bônus a fim gastá-los no Hopi Hari do Paraíso. Quem pensa assim, não entende, nem desenhando, que moradia, alimentação, educação, saúde são direitos fundamentais.

E, nessa hora, brada:

"E esses vagabundos pagam impostos como eu para poderem ter direito a direitos fundamentais?"

Esses mesmos repetem bobagens como "a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou". Pois acham que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço.

E que todas as pessoas ricas e de posses conquistaram o que têm de forma honesta.

Acham que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação.

Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica.

E quem faz de tudo para manter tudo como está.

E doa dinheiro de campanha para isso. Afinal de conta, vale lembrar que o município de São Paulo tem uma verdadeira "Bancada Empreiteira".

Quando vejo milhares de pessoas ocuparem um terreno ocioso, não consigo deixar de ficar feliz porque aquela terra, finalmente, poderá ter uma função social. Com exceção do dono do terreno, de outros donos de terrenos ociosos e de seus representantes políticos, legais e econômicos, ou das pessoas que pertençam às mesmas classes sociais desse pessoal já citado ou é por eles pagos para defender seus interesses, é difícil entender a razão de ter gente que sai atacando uma ocupação de sem-teto como essa, fazendo o papel de soldadinho não-remunerado.

"Por que se acham melhores do que eu?", tive que ouvir de uma mulher tempos atrás contrária a uma ocupação. Não é uma questão de melhor ou pior. E sim de aceitar bovinamente um destino horrível em uma sociedade que, apenas teoricamente, não é de castas. Ou lutar para sair dessa condição.

Existe uma diferença clara entre um terreno em que se semeia vento e se ergue ervas daninhas e um terreno onde se produz e onde constrói uma vida. O primeiro não pode existir em uma sociedade em que muitos passam fome e vivem ao relento.

Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia. Não ganhamos nada com isso, pelo contrário, perdemos. Como cidadãos, como seres humanos. Mas preferimos defender o não uso bizarro de uma propriedade privada do que a dignidade do ser humano. Tudo em nome de uma concepção equivocada de Justiça.

A polícia não é a única responsável por manter a ordem do povo. O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho e a própria mídia, garante o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia. Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal, leva na cabeça. Quem resolve se insurgir contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária.

Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível um grupo se manter no poder por tanto tempo e de forma aparentemente pacífica como ocorre por aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.