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Leonardo Sakamoto

Poluição faz mais mal que maconha. Mas como dá lucro para gente grande...

Leonardo Sakamoto

09/05/2014 12h58

Daí que, de repente, me vejo em um pronto socorro por questões que não vêm ao caso (e, antes que alguém pergunte, não é para tomar glicose – tenho 37 anos e não 21). E lembrei de um médico amigo que dizia ser possível afirmar que o inverno se anuncia no horizonte quando começam a pipocar crianças e idosos nos inaladores por problemas respiratórios.

Você que mora em um lugar civilizado, talvez tenha dificuldade para entender o que é viver dentro de um grande fumódromo, como São Paulo.

Não é o tabaco ou mesmo a cannabis que tornam o céu cinzento. Apesar disso, anúncios da primeira substância são proibidos na TV e a venda da segunda ainda leva ao xilindró, enquanto propagandas de automóveis – estes sim, responsáveis pelo sovaco de urso que cobre a cidade – são onipresentes e fazem você acreditar que felicidade depende de um câmbio e um volante. Antes que alguém reclame, atenção, essa comparação é uma #brincadeira [explicar broxa, eu sei, mas sabe como é esse povo]. Mas, coincidentemente, para muita gente, se você fuma maconha, é um perdedor. E se você não tem um carro, também é um perdedor. Mundo lôko…

Além do mais, perguntei a um amigo médico se número de entradas no PS por uso excessivo de maconha é maior que as causadas por poluição do ar. Ele riu.

Enfim, da mesma forma que os médicos prevêem, feito aquele galinho português azul e rosa, que o tempo está mudando pela quantidade de atendidos no PS, quem vem de avião para São Paulo sabe que está chegando quando avista uma cidade imersa em uma camada marrom e espessa, uma coisa de centenas de metros de altitude e quilômetros de largura, com cara de algodão doce queimado.

Aí me lembro que convivemos com uma faixa escura preenchendo o lugar em que estaria o horizonte – levantado, por ela, alguns centímetros do seu lugar de direito. Talvez pelo fato disso parecer distante, o paulistano não acredita que está imerso nela. Sente seus efeitos quando os olhos começam a coçar, a asma ataca ou aquele pigarro fica mais comprido que o de costume.

Enquanto isso, em um final de tarde, em um bar vilamadalenizado, gente gracinha se refestela ao pensar que a metrópole fica linda nessa época do ano, com seus pôres-de-sol vermelhos, batendo palmas quando o Astro-Rei vai embora. Quem disse que micropartículas de produtos químicos nocivos à saúde em estado de suspensão no ar não podem ser românticas?

Os noticiários salpicam aqui e ali que a inversão térmica está dificultando a dispersão dos poluentes, mas nada de falar sobre o nosso modo de vida e as consequências de nosso modelo de desenvolvimento: carbono, enxofre, chumbo e uma sopa de produtos químicos expelidos principalmente por veículos. Comemoramos a ampliação de políticas para fomentar a produção e comercialização de automóveis como forma de manter a economia aquecida e os empregos garantidos.

Enfim, somos reféns dos carros. Seja porque o poder público (com nossa anuência e apoio de montadoras e empreiteiras) manteve o foco no transporte individual em detrimento a investimentos pesados no coletivo, criando uma massa que acha que civilidade é ter um carro bom e não uma boa rede de trens, trams e ônibus. Seja porque criamos um sistema econômico que se tornou deles dependente.

Esse crescimento econômico dá a possibilidade de ter acesso a coisas que não tínhamos antes, por outro outro nos tira preciosos dias de vida. Pois respirar o ar de São Paulo certamente me levará mais cedo para a sepultura.

Se alguém tenta mudar, tirando privilégios dos carros, os defensores do status quo vociferam. "Direitos de quem anda de ônibus deve ser o mesmo de quem anda de carro!" Putz, vai falar isso em outras cidades mais organizadas do mundo que você toma um tapa. "Ah, mas lá as coisas funcionam e aqui não."

Bem, a menos que ache que a vida funcione como um "elevador quântico", em saltos, em que você desapareça de uma situação e reapareça em outra, saiba que mudanças são dolorosas. Mas necessárias.

Quem vive em Sampa, traga o equivalente a três cigarros por dia. E, o pior, sem ter o barato do cigarro. E se alguém reclama, algum adepto do "paulistanismo", o nacionalismo paulistano, patologia que cresce impune por essas bandas do Trópico de Capricórnio, prontamente vomita: São Paulo, ame-a ou deixe-a.

Imaginem isto aqui em 100 anos, com três, quatro graus a mais de temperatura média anual, resultado do aquecimento global causado pela nossa própria ignorância e voracidade por recursos naturais? Se bem que para milhões de paulistanos, excluídos por questões ambientais, sociais, econômicas, culturais esse limite já foi ultrapassado há muito tempo. Ou talvez nunca tenha existido.

Como já disse aqui, boa parte desses observam com desconfiança toda essa animação eleitoral que, a cada quatro anos, pede o seu voto. Analistas dizem que isso é prova de que falta ao povão cultura política. Na verdade, isso é a prova exatamente do contrário: a indiferença é por excesso de cultura política.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.