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Leonardo Sakamoto

Reservar 99% das vagas da USP para escola pública. E cobrar do 1% mais rico

Leonardo Sakamoto

02/06/2014 12h25

Estava lendo o argumento de alguns acadêmicos favoráveis à cobrança de mensalidades em universidades públicas e, por mais que respeite a opinião deles, não tenho como não achar graça em alguns.

Por exemplo, a ideia de que, ao pagar pela educação, o aluno dará mais valor ao ensino. Quem diz isso só pode ignorar o que acontece nas caras escolas e universidades particulares! Dou aula em uma e sei muito bem o que acontece na cabeça de alguns fuinhas que, nascendo em berço de ouro, acreditam que tudo pode ser comprado. Inclusive, sua mais completa indolência. Noves fora alguns pais e mães de alunos que vocês desacreditariam se eu contasse o naipe das reclamações.

Falando sério agora: É claro que a cobrança de mensalidade traria mais recursos para universidades públicas. Garantindo poucas bolsas e cobrando de "quem poderia pagar" (o que, acreditem, pode ser bastante subjetivo), poderíamos ter um perfil semelhante a grandes instituições norte-americanas. Tanto no ensino, na pesquisa e na extensão quanto também na elitização, na exclusão e na baixa pluralidade.

A discussão, contudo, não é essa. E sim a defesa de um princípio: de que a universidade pública seja mantida principalmente com recursos públicos pois, independente de interesses particulares, ela deve ser um instrumento de desenvolvimento da democracia e da sociedade como um todo. E contar com independência para isso. O que inclui não cobrar mensalidades de quem pode ou não pode pagar por elas.

É claro que as universidade públicas estão longe de serem isso. Mas daí escolher o caminho curto da política do fato consumado e jogar a toalha é um pouco demais. Digo política de fato consumado porque todos que acompanham o cotidiano na Universidade de São Paulo, por exemplo, sabem que o processo de sucateamento da universidade não é de hoje.

Acho importante a Folha de S. Paulo ter publicado uma matéria, nesta segunda (2), discutindo a cobrança de mensalidades pela mais importante universidade brasileira, uma vez que essa história é sussurrada há tempos nos corredores palacianos, em festinhas de bairros nobres ou mesmo em fundações ligadas à instituição. Esse debate tem que ser aberto e a população deve ser chamada para participar dele. Caso contrário, corre-se o risco de surpresas aparecerem na forma de mudanças constitucionais de uma hora para outra. Ou, pior: o discurso da necessidade de cobrança de mensalidade ser decantado ao longo do tempo até que todos achem isso normal, mesmo não sabendo o porquê.

E, sendo transparente, devo muito à universidade pública, pois não teria dinheiro para fazer graduação, mestrado e doutorado, da mesma forma que não tive para o ensino médio.

"Ah, mas nesse caso, poderia ser reservada uma cota de bolsistas como você." Que tal uma outra proposta então? Reservamos 99% das vagas da universidade para escola pública, cotas raciais e famílias de baixa renda. E o restante reservamos para alunos cujos pais possam pagar altas mensalidades. E isso sendo por curso, claro. Porque medicina, engenharia, direito, jornalismo são bem ocupados por quem estudou em caras escolas enquanto cursos com menos status ou que dão menos retorno econômico são mais preenchidos por quem fez escolas públicas. Mesmo com a política de cotas existente hoje na universidade.

É claro que esse 99 x 1, presente no título deste post, é uma provocação. Pois o poder público tem a obrigação constitucional de manter a universidade pública, gratuita e de qualidade para todos e todas, independentemente da classe social. E garantir que este acesso não seja dado a alguns poucos beneficiários, como tem sido feito até hoje, mas aumentar o número de vagas para abraçar, com qualidade, quem realmente não pode pagar as escorchantes mensalidades de uma boa instituição privada.

Como já disse aqui, muita gente vai se lamuriar, afirmando que o caminho mais fácil seria mesmo uma privatização da USP, através da cobrança de mensalidades, de taxas, de venda de espaços publicitários, de produção de pesquisa voltada apenas à necessidade das corporações, em suma, de otimização da gestão educacional utilizando critérios de sucesso considerados efetivos pelo mercado. Como uma empresa.

Uma universidade pública, como qualquer órgão público, deve ser gerida pelos princípios da impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade, eficiência e legalidade. Portanto, não fazer esbórnia com o dinheiro da sociedade. Mas também não ignorar as necessidades dessa sociedade nas decisões sobre qual conhecimento terá sua produção financiada. Conhecimento feito por quem que beneficia a quem?

A USP já não se tornou um burgo ao se fechar para a cidade, tempos atrás, com um muro alto que impede aos contribuintes de fora de sua comunidade acadêmica terem acesso àquela enorme área verde nos finais de semana? E dar as costas à cidade fisicamente, ignorar a sociedade que a criou, é bastante simbólico do que acontece nos processos internos.

A USP não está quebrada porque o Godzilla atacou São Paulo, escolhendo o campus da universidade como local de destruição, ou porque naves alienígenas abduziram o caixa da instituição, mas por conta de sucessivas gestões, eleitas de forma pouco democrática, que tomaram decisões que levaram a isso.

Agora, tenhamos decência de recuperar o que deveria ser um dos maiores patrimônios do país ao invés de jogar fora o bebê com a água do banho.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.