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Leonardo Sakamoto

Plebiscito para maioridade penal? Então também quero um para taxar fortunas

Leonardo Sakamoto

19/06/2014 09h41

Daí eu ligo a TV e vejo uma propaganda partidária propondo um plebiscito para a redução da maioridade penal – como se até um marisco com problemas cognitivos não soubesse que, posta em votação, a medida teria amplo apoio por aqui. Pesquisas já apontaram que mais de 90% dos consultados toparia encarcerar a molecada com 16 anos ou mais no intuito de viver em uma sociedade mais "justa" e "segura" (sic).

A propaganda é transmitida no momento em que estão rolando acalorados debates sobre as propostas de novas (e insuficientes, ao meu ver) ferramentas de participação social por parte do governo federal. Como já disse aqui, é um debate entre incluir mais atores na política ou ficar com o cheiro de naftalina dos mesmos de sempre.

Mas é interessante como muitos políticos que só toleram suor de povo a cada quatro anos gostam de encher a boca para falar de plebiscito, exortando a possibilidade de trazer o povo para decidir uma questão.

O que é uma falácia que até a ostra supracitada não teria problemas em entender.

Porque não são todos os temas que esses arautos da democracia propõem que sejam levados a escrutínio público, mas apenas aqueles que mais interessariam a determinados grupos no poder. Percebendo o apoio popular a determinada medida, empolgam-se para colocar em votação porque isso legitimaria a sua posição.

Mas, aí, temos um problema. Uma democracia verdadeira passa pelo respeito à vontade da maioria, sim, desde que garantindo a dignidade das minorias.

Até porque, como sabemos, a maioria pode ser avassaladoramente violenta. Se não forem garantidos os direitos fundamentais das minorias (e quando digo "minoria", não estou falando de uma questão numérica mas, sim, do nível de direitos efetivados, o que faz das mulheres uma minoria no país), estaremos apenas criando mais uma ditadura.

A população pede um misto de Justiça e de vingança com as histórias de violência. Olho por olho, dente por dente. Afinal de contas, aquele bando de assassinos da Fundação Casa (que não reintegra, apenas destrói) deveria é ser transferido para a prisão e apodrecer por lá, não é mesmo? Não importa que apenas 0,9% dos jovens internados na antiga Febem estão envolvidos com latrocínios. Se a gente diz que a culpa é deles, é porque alguma coisa fizeram de errado.

O problema é que não há debate público decente sobre a questão, em que haja tempo e calma para colocar todos os pontos relacionados e tirar uma decisão. O que temos é gente gritando simplismos na TV e na internet, que não colaboram para evoluirmos no tema, mas sim para cristalizar preconceitos.

E é impossível tomar uma decisão racional sobre um assunto sem informação suficiente sobre ele. Por que ao comprar uma TV você pesquisa a fundo sobre as possibilidades e ao opinar sobre um assunto de vital importância para a sua vida você simplesmente compra a posição corrente ou confia em um analista qualquer (inclusive este que vos escreve)?

É por isso que as ferramentas de participação popular devem incluir instâncias de debates e construção coletiva. A ideia é trazer a sociedade para a discussão e não transformá-la em ferramenta descartável para benefício de alguns.

Nessas horas me pergunto se estamos prontos para baterias de consultas públicas. Porque ao jogar para a massa, a dignidade de um grupo pode ir para o chinelo.

Pois o processo é contaminado uma vez que não são minorias as responsáveis por fazerem as perguntas levadas à consulta, mas, pelo contrário, quem está no poder.

A maioridade penal, o direito ao aborto e à eutanásia, a descriminalização da maconha, se levadas a plebiscito, hoje, perderiam.

Mas, olhe que interessante: a taxação de grandes fortunas, a auditoria na dívida brasileira além de algumas medidas bastante severas para distribuição de riqueza certamente ganhariam.

Agora me digam: qual grupo de perguntas estaria mais perto de ir a uma consulta? Por quê?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.