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Leonardo Sakamoto

A ditadura da felicidade na Copa do Mundo

Leonardo Sakamoto

28/06/2014 08h38

Com exceção à posição vexatória no bolão dos amigos (Costa Rica? Sério mesmo?), estou me divertindo horrores com a Copa e terei severa crise de abstinência quando ela acabar.

Nem todo mundo compartilha do sentimento, contudo. O que não é ruim. E não estou falando de quem decidiu não ver os jogos em protesto contra as prioridades do poder público ou aqueles que vêm no evento uma propaganda socialista. Há também os que se sentem oprimidos em momentos de catarse coletiva, não gostam da quebra da rotina ou têm um milhão de outras razões.

Encontrei um amigo que não tem nada contra o futebol, muito menos com o clima de micareta em que mergulhou a Vila Madalena ou mesmo contra as hordas de trocadores de figurinhas. Ele só quer ficar na dele.

Mas reclama que, a todo o momento, amigos, família, colegas de trabalho questionam o motivo disso. "Como assim? Você não vai à festa para comemorar o resultado de Bélgica e Coreia do Sul?!" E não adianta explicar que não está mal, nem deprimido, nem de mau humor, nem é do contra, muito menos está torcendo para que tudo dê errado.

Isso me lembrou um texto que eu havia escrito há um bom tempo. Atualizo, agora, a discussão por achá-la pertinente. Pois tenho problemas em concordar com quem tenta me encaixar em uma ditadura da felicidade 24×7, alimentada por comerciais de TV que fazem você se sentir um lixo, um pária, um idiota sem alma se não concorda que este momento é um dos melhores de todos os tempos.

Esse sentimento que muitas pessoas vivem na Copa do Mundo é semelhante àquele das festas de final de ano ou do Carnaval. Afirmar que um ano não foi bom significa que tudo foi horrível e que rastejamos feito lesmas catatônicas até o som da rolha da sidra do dia 31 de dezembro? Claro que não. Só que tem gente que não entende isso e quer pasteurizar as experiências de vida.

Creio que muitos se esforçam para ver tudo de um ponto de vista cor-de-rosa. E aí qualquer posicionamento que não compartilhe disso acaba sendo um ataque frontal à sua própria felicidade.

Um conhecido ficou incomodado com uma mulher que chorava em público. "Ai, ela não podia fazer isso em outro lugar?", disse. Se estivesse rindo, ele não se importaria tanto. Porque, em verdade, o problema não era ela, mas ele. E o esforço que ele fazia para ficar bem em sua vida complicada, com vergonha de que o mundo percebesse que as coisas não eram perfeitas.

Em outro momento, há alguns meses, quando atravessei a porta do desembarque no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, uma mulher destoava do clima festivo que permeia, por regra, os desembarques de aeroportos. Ela chorava em silêncio, provavelmente esperando alguém. Doeu ver a cena. Pois não eram lágrimas redentoras de quem imagina o que virá, mas um choro doído e sem contrastes de quem simplesmente não sabe. Um bom tempo passou até que ela, resignada, se deu por vencida e foi embora.

Muita gente reclamou, disse que deveria ter ido conversar com ela, fazê-la sorrir. O fato é que, às vezes, a gente simplesmente não quer sorrir quando os outros querem que ela sorria. E sim viver determinado sentimento porque ele faz parte da existência ou ainda para poder superá-lo e não enterrá-lo nos descaminhos da memória. Isso sem contar que, não raro, nós temos as respostas para nós mesmos, bastando procurar em silêncio.

Somos condicionados a, diante de algumas situações, tentarmos "catequizar" um semelhante que, aos nosso olhos, não "encontrou a felicidade".

Mas quem disse que precisamos ser salvos?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.