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Leonardo Sakamoto

Você é daquelas pessoas que só têm amigos que concordam com elas?

Leonardo Sakamoto

25/07/2014 17h29

Desde que a situação em Gaza voltou a piorar (porque nunca esteve boa de fato), tenho recebido mensagens de muitas pessoas queridas questionando minhas críticas ao ataque militar israelense.

(Não vou tratar de Palestina e Israel neste post. Se quiserem ler minha opinião sobre o que está acontecendo no Oriente Médio e as consequências para a população de lá, leia esses links.)

Eu acho isso bastante normal. Até porque é o ó do borogodó só ter amigos e amigas que concordam com você. Há pessoas (e jornalistas e colunistas) que parecem não aceitar serem questionados. Desejam, ao contrário, uma boa claque. Talvez para afastar os medos e inseguranças sobre suas próprias crenças. Tomo, portanto, a liberdade para retomar um debate que já trouxe aqui.

Certas frases soam para mim como um estalar de martelo em uma bigorna. "Porque sim, ué" é o que me vem à cabeça como resposta para a pergunta "Por que você é amigo de fulano de tal?".

Aí sou obrigado a escutar um rosário de argumentos do porquê de uma pessoa X, Y ou Z ser inapropriada para o convívio social, dado os seus posicionamentos políticos e escolhas profissionais.

Talvez o sobressalto e a tentativa de me convencer a largar mão de almoçar com alguém que considero agradável sejam até maior pelo fato de me enxergarem como uma pessoa progressista (sobe fundo musical com "A Internacional": O que? O japonês é de esquerda? Por Nossa Senhora de Fátima! Vou abandonar este blog demoníaco já! Sakamoto, volta pra Cuba, que é seu lugar! Vá ver Cuba lançar foguetes!)

Quando dou risada da situação ou insisto na perda de tempo dessa discussão, surgem teorias para explicar o comportamento humano – afinal, muitos acham que são PhD no assunto só por terem lido Sabrina:

– Então, são amigos desde o colégio!
– Não, o cara salvou ele de ser devorado por uma morsa mutante e, desde então, rola uma dívida de gratidão.
– Transplante de rim, sabe? Doação…
– Imagina, só é amigo porque o outro lhe emprestou dinheiro.
– Ah, ele faz isso para provocar e mostrar que é plural. Um pedante.

Acredito que meu ponto de vista está correto, mas isso não faz dele uma Verdade Absoluta – até porque verdades absolutas não existem. Não mais – ao contrário do que boa parte dos leitores de blogs acreditam. Uma outra pessoa pode defender que a forma mais correta de acabar com a fome, a violência, as guerras, a injustiça seja por outro caminho. Desse enfrentamento de ideias e de propostas sairá um vetor resultante que apontará para uma direção, dependendo da correlação de forças envolvidas, dos atores dedicados a isso, da aceitação dessas propostas pelo restante de uma sociedade.

Não acredito que o livre mercado seja a panaceia para tudo, mas há quem diga que sim. Ótimo, vamos discutir os argumentos que embasam as diferentes posições e não chamar o outro de canalha ou burro, esquerdista idiota ou direita fascista, e travar por aí a discussão. Ou pior, defender o fechamento de um veículo de comunicação.

Discordo visceralmente de muitas reportagens que leio, mas nem por isso acho que elas não tenham o direito de vir a público (a menos que tenham sido produzidas para incitar a violência contra outras pessoas). Pelo contrário, discordo, mas defendo o direito de que seja dito. A saída para contrapor uma voz não é o silêncio, mas sim outra voz (o fato de pessoas que defendem um ponto de vista semelhante ao meu não terem conseguido construir uma alternativa – ainda – diz tanto sobre a nossa incapacidade de comunicação quanto sobre o poder de fato do outro).

Muitos simplesmente repetem mantras que lêem na internet, ouvem em bares ou vêem na igreja e não param para pensar se concordam ou não realmente com aquilo. É um Fla-Flu, um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização, tornando esse outro uma coisa sem sentimentos. Isso é muito útil durante eleições polarizadas (como,ao que tudo indica, a deste ano), mas péssimo para o cotidiano.

Somos seres complexos com múltiplos níveis de relações. Tenho colegas conservadores politicamente, mas liberais em comportamento que guardo em muito mais estima do que colegas progressistas politicamente, mas com um discurso e prática comportamentais bisonhos. Pois não é possível defender a liberdade dos povos e transbordar machismo, tratando a esposa como uma serva em casa, não é? Crimes são cometidos e escondidos sob a justificativa de que determinado membro defende os ideais do grupo e, portanto, deve ser protegido. Seja em uma associação de produtores rurais, seja em um sindicato de trabalhadores.

É mais fácil pensar de forma contrária, preto no branco, os de lá, os de cá. Mas, dessa forma, a vida vai ficando mais pobre. Sem o direito ao convívio diário com aqueles que pensam de forma diferente, estancamos em nossas posições, paramos de evoluir como humanidade. Do outro lado sempre estará um monstro e do lado de cá os santos. Isso sem contar a impossibilidade de apreciar tudo o que o outro tem de melhor – do ombro amigo à conversa inflamada em uma mesa de bar.

De uns tempos para cá, tornou-se mais frequente ter que defender algumas amizades publicamente diante de insultos de outros amigos.

Nunca pensei que seria necessário dizer isso, mas peço a cada um buscar seu quinhão de felicidade à sua maneira e deixe que os outros façam o mesmo, considerando o quão contraditória é nossa sociedade capitalista.

Humildemente, sugiro que busquem a tolerância no diálogo, mesmo que firme e duro, e se perguntem se acham que estão certos a todo o momento, uma vez que nossa natureza não de certezas e sim de dúvidas e falhas que só poderão ser melhor percebidas no tempo histórico.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.