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Leonardo Sakamoto

Deus ignora Itu e moradores percebem que falta d'água é culpa das pessoas

Leonardo Sakamoto

23/09/2014 12h10

Qual é o exato momento em que um povo se cansa de esperar a ajuda de Deus e vai à luta? A resposta não é fácil. Depende da história desse povo, o nível de consciência sobre si mesmo e o lugar em que vive, o tamanho ou a gravidade do problema e, quase sempre, de uma faísca que acende o pavio.

Atenção para o título desta matéria da Folha de S. Paulo, de 11 de julho deste ano:

Moradores de Itu fazem procissão para pedir chuva

Cerca de 2 mil fiéis da cidade do interior paulista, que estava sob racionamento já havia cinco meses na época, saíram em caminhada pedindo que o sobrenatural enviasse chuva à região. Oraram e lavaram uma cruz com garrafinhas de água.

"Assim como o profeta Elias em um momento da história também suplicou a Deus, e Deus mandou chuva. Nós nos baseamos em situações bíblicas e, diante da necessidade de água, pedimos por todas as cidades, não só por Itu", disse o padre Francisco Carlos Rossi, em depoimento colhido pela repórter Ana Krepp.

Coincidentemente choveu naquele dia.

Há quem diga que foi vontade divina.

Mas, se foi, veio de um Deus bem sovina porque a chuva não bastou.

Nesta segunda (22), mais de dois meses de seca depois, outro título, agora do UOL:

Câmara de Itu (SP) é apedrejada em protesto por causa de falta de água

Outras 2 mil pessoas protestaram em frente à Câmara dos Vereadores da cidade por conta da falta de ações efetivas para enfrentar a falta de água. Manifestantes lançaram pedras e ovos contra o edifício. Ao final, a polícia militar interveio no protesto, que havia sido convocado pelas redes sociais. Bombas de efeito moral foram usadas.

Os reservatórios de Itu estão com menos de 2% de sua capacidade. Há bairros que ficam uma semana com as torneiras secas e aulas foram suspensas, segundo a reportagem.

Vocês vão dizer que os 2 mil que pediram a intervenção divina não foram os mesmos 2 mil que exigiram ação política. Talvez digam que alguém se beneficiará do ponto de vista eleitoral. E que lançar pedras não é o melhor jeito de expressar insatisfação. Provavelmente estarão cobertos de razão para tudo isso.

Mas a mesma Itu que gerou uma procissão para pedir aos céus, também produziu um ato político, responsabilizando homens e mulheres e mostrando que, ao contrário do que aponta o senso comum, perto do abismo, há quem saiba o que dá certo e o que não dá.

Isso é daquelas coisas que fazem a gente ter um pouquinho mais de fé. No ser humano, claro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.