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Leonardo Sakamoto

Quem tem chance de chegar à Presidência tem pavor de falar de aborto

Leonardo Sakamoto

03/10/2014 11h40

Adoro quando candidatos à Presidência da República dizem que não é possível avançar em determinado tema porque a legislação impede.

Foi assim, nesta quinta (2), quando Eduardo Jorge perguntou para Dilma Rousseff sobre a necessidade de garantir atendimento público às mulheres que desejam interromper a gravidez, citando o caso de Jandira dos Santos – que, no desespero, procurou uma clínica ilegal, morreu e teve seu corpo carbonizado no Rio.

Dilma deu aquela esquivada Matrix, desviando das balas, falando de campanhas de prevenção com os mais jovens até finalizar dizendo que a lei autoriza o procedimento em casos específicos (como estupro e risco de vida para a mãe) e não é possível fazer nada além disso.

Se a pergunta fosse para Aécio ou Marina, a resposta também seria sebosa como essa. Pois os três possuem chances reais de assumir a cadeira do Palácio do Planalto e não querem entrar em bola dividida, para um lado ou outro.

Mas quantas leis foram alteradas para possibilitar mudanças radicais nos governos do PSDB e PT, por exemplo? Em governos em que Dilma, Marina e Aécio participaram? Criou-se a reeleição, doou-se patrimônio público (ops, quer dizer, privatizou-se), mudou-se a Previdência, rasgou-se a proteção ambiental… "Ah, mas o Legislativo é um poder independente." Sabe de nada, inocente… Os chamados "mensalões" não foram produzidos por esses partidos para garantir governabilidade?

Um amigo cínico e que, por isso, está à frente de uma grande redação, me disse que se PSDB e PT ainda tivessem feito mutretas para garantir reforma agrária, taxação de grandes fortunas, uma grande reforma urbana, o fim do trabalho infantil ou uma bela de uma reforma que tornasse a política decente, eles ainda sim mereceriam ser processados. Mas, ao menos, poderiam dizer que o resultado nos arremessou ao futuro e não nos manteve atrelado ao passado.

O fato é que leis mudam. Normalmente, na velocidade que interessa a quem detém o poder econômico ou o político.O estatuto da reeleição passou em meses. A PEC do Trabalho Escravo levou 19 anos.

Sejamos razoáveis. Estamos falando apenas sobre a dignidade de mulheres.

Se elas querem abortar, que corram o risco por conta própria. Sintam dores. Fiquem estéreis. Sangrem até morrer. Ou calem-se e entendam de uma vez que o corpo delas não lhes pertence. Pertence a nós, homens, ao capital e a Deus.

Em tempo:

Levy Fidelix no debate da Globo.

Deixado sempre de lado. Sofrendo bullying da plateia. Levando um sabão do Eduardo Jorge e da Luciana Genro.

Fiquei meio com dó do Levy.

Não, pensando bem, não fiquei não.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.