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Leonardo Sakamoto

A ignorância sai da rede, ganha corpo no boteco e volta para a internet

Leonardo Sakamoto

11/10/2014 10h46

Escrevo isto para deixar registrado para a posteridade porque, talvez, não cheguemos vivos ao dia 26 de outubro. Daí, quando os arqueólogos do futuro forem entender nosso tempo, talvez isso lhes seja útil.

Percebi, finalmente, que o que está em jogo nestas eleições é a sobrevivência da humanidade neste torrão de terra intertropical. E, creio, vamos todos perder.

A verdade é que estamos em um episódio de Walking Dead e ninguém avisou. Maldito PIG! Malditos blogueiros sujos! Todos esconderam essa informação de nós.

Tem gente sendo mordida e virando morto vivo. Porém, não é o sangue e a saliva contaminadas os responsáveis pela infecção, mas a viralização de preconceito e desinformação.

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Abaixo, a descrição de um caso típico de contágio:

"Sim, o Lula tá proibido de ir a qualquer país da Europa desde que deixou seu governo por causa de contas secretas com bilhões que ele tem por lá.

Como sonegou o imposto, se pisar em qualquer país, vai preso por sonegação. Vi na internet.

É uma vergonha um analfabeto ter governado o país. Eu só vou sossegar quando ver ele preso.

O Fernando Henrique era melhor como presidente, viu? Agora que tá defendendo maconheiro, só fala besteira, endoidou de vez. Sociólogo de botequim!

Li na internet que aquele monte de livro que ele escreveu, na verdade, teve as ideias roubadas de outra pessoa que está processando ele, há décadas, por ter levado todo o crédito. E ele fica posando de acadêmico – idiota, deve saber tanto quanto eu. É um ladrão emplumado.

E aquela louca das selvas, lá do Acre? Estamos perdidos…

Mas, amigos, quando puderem, venham a São Paulo, conhecer a locomotiva que puxa esse país! As coisas lá funcionam bem melhor que em qualquer outro lugar.

Por exemplo, esse garçom. Tô pedindo há dez minutos uma pimenta e ele não traz. E depois o pessoal aqui do Nordeste reclama de desemprego.

Tava lendo na internet que tudo isso é efeito do Bolsa Família, quer dizer, Bolsa Vagabundagem. Como os impostos que eu pago pingam todo mês na conta da mulher do sujeito, ele tá pouco se lixando para o emprego.

Ah, veja, esse é meu neto caçula. Ele é um grande garoto! Mas vocês têm que ver meu outro neto, filho do meu outro filho, que ficou em São Paulo. É loiro de olhos azuis. Azuis! É a coisa mais linda do mundo. Já te contei a história de como…"

As palavras podem não ser exatamente essas, mas ouvi a conversa, em um restaurante, no Rio Grande do Norte, tempos atrás. Na época, cheguei a postar a conversa aqui, mas acho que ela ganha uma nova conotação neste período eleitoral. Comentá-la torna-se uma contribuição para a minha campanha em prol de garantir que o Brasil chegue inteiro até o dia 26 de outubro.

Acho que nunca fiquei tão agoniado com uma conta que não chegava, me obrigando a suportar dois casais que pareciam competir para ver quem tinha mais preconceitos na algibeira. Como estava acompanhado, evitei interagir.

Não, esta não é uma discussão sobre preferências partidárias. Aliás, alguém precisa urgente avisar as pessoas que preferências políticas e preferências partidárias são duas coisas diferentes.

E sim sobre como funciona a dinâmica de determinados preconceitos. Como fluem pela sociedade, entrando pelos menores buraquinhos e encharcando tudo à sua volta.

Saltam de forma anônima da rede, ganham uma reinterpretação livre a partir de conversas em espaços como botecos, restaurantes, quadras de futebol society, festinhas e jantares em família e voltam para a internet, marombados e fortalecidos a partir da indignação ignorante de quem não checa informação.

Apenas posta.

Loucamente.

lartecachorro

Não estou defendendo Lula. Não estou defendendo FHC. Não estou defendendo a Marina. Particularmente, acredito que os três contribuíram, sob pontos de vista diferentes, para avanços inegáveis. Mas este não é o caso.

Só gostaria de viver em um lugar onde as pessoas não acreditassem em tudo o que lhes dizem.

Principalmente não acreditassem tão piamente e de forma acrítica em nós, jornalistas.

Mas já é tarde. Corram para as montanhas. Salvem suas vidas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.