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Leonardo Sakamoto

Dona da M.Officer é condenada por trabalho análogo ao escravo

Leonardo Sakamoto

19/11/2014 16h37

A M5, empresa do estilista Carlos Miele detentora da marca M. Officer, foi condenada pela exploração de trabalho análogo ao de escravo. Em sua decisão, a juíza do trabalho Sandra Miguel Abou Assali Bertelli considerou-a responsável pelas condições a que um grupo de trabalhadores resgatados estava submetido em uma oficina "quarteirizada".

A Empório Uffizi, que intermediou a contratação, também foi condenada por gerenciar o emprego de escravos na produção da marca. Ambas terão de pagar R$ 100 mil a um trabalhador resgatado a título de indenização por danos morais. A Justiça entendeu que, por se tratar de atividade-fim, a terceirização foi ilícita. A M5 nega a responsabilidade pela situação encontrada. A Uffizi não se posicionou. Ambas ainda podem recorrer da decisão. A matéria é de Daniel Santini, da Repórter Brasil.

Em duas ações em oficinas diferentes, fiscalização flagrou escravidão na produção para a M. Officer. Foto: Daniel Santini

Em duas ações em oficinas diferentes, fiscalização flagrou escravidão na produção para a M. Officer. Foto: Daniel Santini

Na sentença em que reconhece vínculo empregatício da M.Officer com os costureiros resgatados, a juíza aponta que "pretendendo conferir ares de uma relação meramente comercial mantida entre empresas, a M5, em realidade, terceirizou a confecção das roupas que comercializa em suas lojas".

"O benefício auferido, com a terceirização de uma de suas atividades-fim, no campo industrial, é inegável", ressalta. A decisão destaca ainda que "as peças de roupa saem da oficina contratada, em média, por R$ 4,00 a R$ 6,00 a unidade, sendo este o valor pago aos trabalhadores, na modalidade de remuneração por produção", e que "definitivamente, esse não é o preço final de venda das roupas nas lojas da M. Officer, porquanto as peças atingem, no mercado consumidor, valor correspondente a até 50 vezes o valor inicial".

Tal qual as autoridades presentes na fiscalização, a Justiça do Trabalho entende que o costureiro proprietário da oficina quarteirizada foi vítima e não culpado pela situação encontrada, como pretendiam as empresas. Ao responsabilizar tanto a M.Officer quanto a intermediária Uffizi pelo flagrante de escravidão, a juíza destaca que ambas tinham poderes gerenciais sobre os trabalhadores, determinando o ritmo e modo de produção. "A extensão da responsabilidade a todos os envolvidos na cadeia produtiva implica impor limites à continuidade da repulsiva prática da exploração do trabalho escravo contemporâneo, de modo que a busca de maior lucratividade nas formas mais 'sofisticadas' de fraude ceda passo ao temor da responsabilização pelo ilícito praticado", escreveu.

A juíza cita as provas apresentadas, entre as quais depoimentos colhidos pelo juizado itinerante em um dos flagrantes, para afirmar que não há dúvidas de que a empresa empregou trabalho escravo na produção de suas peças. O texto destaca que os costureiros, todos migrantes bolivianos, estavam submetidos a condições degradantes e cumpriam jornadas extensas. Na casa que servia de alojamento e oficina, vivia uma criança de dez meses, ainda em idade de amamentação.

A M.Officer anunciou que irá recorrer da decisão. Em nota, os responsáveis pela marca afirmam que "a M5 irá tomar as medidas judiciais cabíveis para exercer seu direito de defesa e elucidar os fatos". A empresa diz ainda que "ratifica seu posicionamento no sentido de que cumpre integralmente todas as obrigações trabalhistas que incidem sobre o exercício de suas atividades empresariais, nos exatos termos e em respeito à legislação em vigor, bem como de que não possui qualquer responsabilidade sobre os fatos ora noticiados, consoante será oportunamente demonstrado perante o Poder Judiciário".

Vulnerabilidade – A ação que resultou na condenação foi movida pela Defensoria Pública da União (DPU), acionada para garantir os direitos dos trabalhadores resgatados. De acordo com a defensora Fabiana Galera Severo, do 2º Ofício de Direitos Humanos, Tutela Coletiva e Migrações, antes de acionar a Justiça o órgão ainda tentou negociar um acordo para garantir o pagamento das verbas rescisórias. "Nós tentamos uma solução conciliatória até o último momento, mas a M5 não concordou. Ainda que com o acordo não houvesse o pagamento da indenização de R$ 100 mil, a situação de vulnerabilidade econômica e social era tão alta que o o trabalhador abriria mão para receber só as verbas rescisórias", afirma.

"Não foi possível o acordo porque a empresa não quis reconhecer nenhum tipo de responsabilidade. A decisão foi vitoriosa, mas essa luta via processo judicial é muito difícil para as pessoas. Seria importante que as empresas tivessem uma sensibilidade maior, até porque elas não vão escapar da responsabilidade", argumenta. "O problema é que a empresa não está preocupada com o dinheiro, mas sim em executar uma manobra jurídica de se eximir da sua responsabilidade, usando o escudo de uma terceirização ilícita. Aí paga para ver às custas dos direitos mais fundamentais, dos direitos sociais de um trabalhador que está em uma situação de extrema vulnerabilidade", completa a defensora.

A ação foi aberta em nome de quatro costureiros resgatados costurando peças da M.Officer. Apenas um deles, porém, compareceu à audiência para dar continuidade à ação. A defensora acredita que os demais foram pressionados e desistiram, perdendo assim o direito à indenização. "Pela lei, não tem como eles seguirem nessa ação; mas nada impede que ajuízem uma nova e se valham desse precedente", afirma.

Outras ações – A sentença pode servir de precedente e influenciar outro processo que a M.Officer enfrenta em função do emprego de trabalho escravo na sua linha de produção. Em outra ação diferente, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tenta, com base em diferentes flagrantes de escravidão na confecção de peças da marca, banir a empresa do Estado de São Paulo (com base na Lei Paulista de Combate ao Trabalho Escravo, sancionada em 2013) e condená-la a pagar R$ 10 milhões em danos morais coletivos.

Na decisão, a juíza destaca que o emprego de trabalho escravo é crime previsto no Artigo 149 do Código Penal e determina que tanto o MPT quanto o Ministério Público Federal sejam oficiados sobre o caso para "que sejam apurados os fatos denunciados e punidos os ilícitos praticados".

A sentença destaca ainda que "a escravidão contemporânea não é mais aquela traduzida pelo aprisionamento, mas por outras situações tendentes a reduzir o trabalhador a condições brutais, indignas, inseguras, humilhantes, retirando-lhe de sua condição humana", e lembra que "a nova redação conferida ao artigo 243 da Constituição da República por força da Emenda Constitucional 81/2014 trouxe novos paradigmas para o debate, atribuindo responsabilidade social, trabalhista e penal àqueles que, no topo da cadeia produtiva, fomentam sua lucratividade às custas da exploração do trabalho do ser humano".

Clique aqui para baixar a decisão na íntegra.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.