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Leonardo Sakamoto

Leitores binários em guerra contra seu próprio povo

Leonardo Sakamoto

25/11/2014 07h55

Nutro uma certa inveja por pessoas que demonstram um pensamento binomial. Para eles, a vida é tão simples! É A ou Z – e só. Não existe outra coisa entre um polo e outro, nenhuma área cinzenta, nenhuma dúvida, nada.

Enfim, o mundo não é complexo. As pessoas idiotas é que tentam turvar aquilo que é certo, confundindo os "homens e mulheres de bem".

Daí, para a vida fazer sentido, eles dizem que todos têm que abraçar uma ideia e simplificar o mundo ao máximo. Se não consegue fazer isso, sem problema, eles te dão uma mãozinha, taxando você.

Se você não é hétero é homo. Se defende políticas para os mais pobres, não pode ter um smartphone. Ou apoia a campanha de terra arrasada do governo contra as drogas ou é um usuário de crack que rouba a mãe pelo vício. Quer depor a presidente porque tudo o que o governo faz é corrupção ou está ao seu lado porque da boca da mandatária saem rios de leite e mel.

Enfim, recentemente tratei aqui de um projeto de lei que está tramitando no Congresso Nacional que revoga o Estatuto do Desarmamento e está sendo empurrado pela Bancada da Bala. Se aprovado, vai facilitar o porte de armas por civis.

Bastou isso para a parcela binária dos meus leitores reclamar de uma foto minha, segurando um fuzil, tirada com o exército de libertação de Timor Leste durante uma reportagem em 1998 – que eu, orgulhosamente, estampava em páginas nas redes sociais.

Afinal de contas, como alguém pode ser a favor do desarmamento civil e a favor de um exército de libertação?

(pausa para o suspiro…)

Isso que dá faltar às aulas de história para ir jogar bola e videogame ou passear no shopping.

Um povo passa um quarto de século lutando contra um exército invasor, que matou mais de um terço de sua população, estuprou milhares de mulheres através de uma política de limpeza étnica, roubou terras e recursos naturais e condenou outros tantos à inanição. E, praticamente sem ajuda de ninguém, vence, tornando-se um país livre. Ao sair, esse invasor e seus parceiros ainda promovem um último banho de sangue. O mundo saúda a conquista da autodeterminação e a história desse povo torna-se um exemplo.

Menos esse pessoal que acha que "resistência" é bandidagem", não conseguindo diferenciar uma coisa de outra através da reflexão. A menos que seu colunista preferido ou veículo de comunicação do coração lhe façam o favor de interpretar o mundo. Pois essa tarefa ele ou ela já terceirizaram há tempos.

Hipoteticamente, se o Brasil fosse invadido por um exército estrangeiro, esses seriam os primeiros a se oferecem como colaboracionistas.

Certamente, em troca, pediriam que fosse garantida a ordem para que houvesse progresso. Não duvido que seriam os primeiros a apontar as mulheres que "mereceriam" um corretivo por não se portarem ou se vestirem como se espera delas. A sugerir que minorias que reivindicassem direitos fossem caladas pelo risco que representam aos "homens de bem". A exigir que a "religião oficial" fosse respeitada em detrimento a "cultos demoníacos." E que, uma vez que uma cena como a da queima de livros de Fahrenheit 451 pareceria demodê, que os bancos de dados de sites que propagam ideias que respeitassem os direitos humanos fossem terminantemente apagados e seus autores presos.

Já disse aqui uma vez. Ser pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações.

Há pessoas que reclamam da "violência" de ocupações de imóveis vazios, entregues à especulação, feitas por uma legião de pé-rapados. Por que esses farrapos humanos simplesmente não morrem em silêncio?

Resistência não é baderna, desordem e violência gratuita. Mas o oposto: uma luta pelo reestabelecimento do respeito aos direitos humanos.

E, principalmente, significa que os pequenos podem, sim, vencer os grandes. E os fracos, rotos e rasgados são capazes de sobrepujar fortes, ricos e poderosos.

Por isso, o desespero inconsciente dos leitores binários.

Afinal, são eles, consciente ou inconscientemente, os "soldados" da manutenção do status quo. Acham importante andar armados ao invés de reforçar a capacidade do Estado de garantir paz. Não apenas pela repressão, mas também por garantir direitos.

Pois estão em guerra. Guerra contra seu próprio povo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.