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Leonardo Sakamoto

Denúncias na Apple: sentir culpa, boicotar ou pressionar por mudanças?

Leonardo Sakamoto

20/12/2014 11h09

Infiltrando repórteres como operários em fábricas de iPhones e iPads, a BBC mostrou como os trabalhadores ainda sofrem com longas jornadas e maus tratos na China, apesar de antigas denúncias envolvendo a linha de produção dessas mercadorias. Não apenas isso, mas foram até a Indonésia mostrar a superexploração em minas de estanho, utilizado na fabricação de componentes para a Apple.

Há algumas semanas, publiquei um texto sobre a questão do trabalho escravo nos componentes da indústria de eletrônicos – e fui chamado de alarmista…

A discussão gerada a partir de mais este pacote de denúncias é fundamental e vai muito além da culpa de comprar ou não uma marca – até porque, na prática, a maior parte dos celulares e aparelhos eletrônicos compartilham dos mesmos fornecedores de matéria-prima e são produzidos da mesma forma na Ásia.

Antes de mais nada, vamos retomar o histórico: nos últimos anos, reportagens que mostraram as condições de trabalho das fábricas da taiwanesa Foxconn, que produz para a Apple na China, como as do jornal New York Times e da revista Wired, fizeram com que a maior empresa em valor de mercado do mundo recebesse pesadas críticas.

E, para não ser acusada de fazer (muito) dinheiro com a superexploração alheia, a Apple contratou a Fair Labour Association a fim de auditar essas condições nas fábricas e recomendar soluções. O relatório que resultou disso, mostrou jornadas de trabalho extenuantes, horas-extras não pagas, situações que colocavam em risco a saúde e a segurança do trabalhador, entre outros problemas.

A Fair Labour prescreveu ações que iriam das melhoria da alimentação e alojamento à redução da jornada de trabalho, de 70 ou 60 para 49 horas semanais (!). Na época, conversei com diretores da Fair Labour, em Washington, e eles afirmaram que mudanças estavam acontecendo, mas havia muito o que caminhar, principalmente no que diz respeito a essa jornada de trabalho maluca.

Naquele momento, denúncias vieram a público, através de uma agência de notícias estatal chinesa, afirmando que escolas profissionalizantes teriam exigido que centenas de estudantes ajudassem na fabricação de componentes para o iPhone 5 devido à escassez de mão de obra.

A Foxconn teria dito que eles são livres para sair a qualquer momento (por um acaso, a mesma resposta que tenho ouvido de fazendeiros escravagistas do interior do Brasil. Quer ir? Vai! Sei…)

Quando falo a empresas do setor têxtil sobre a conjuntura do trabalho no Brasil, passo um bom tempo tentando quebrar os mitos de que a China não possui legislação trabalhista (pois possui e teve mudanças para melhor recentemente) e de que o baixo custo dos produtos de lá se deve única e exclusivamente ao uso de trabalho escravo e infantil.

Isso está longe de ser verdade, há muitas outras variáveis incluídas, mas a necessidade de concorrência internacional é sempre um ótimo argumento para quem quer rebaixar o nível de direitos dos trabalhadores por aqui.

Para estes, a bilionária australiana Gina Rinehart, considerada a mulher mais rica do planeta, com seus mais de US$ 30 bilhões, é uma musa inspiradora. Ela defendeu, há dois anos, a redução do salário mínimo em seu país, dizendo que, na África, conseguiria contratar pessoas por menos de R$ 4/dia. Depois perguntam por que certas pessoas permanecem ricas…

Demônio na fábrica – Há mais de 50 anos, o "demônio" apareceu para um grupo de operárias que trabalhavam em uma linha de produção de uma fábrica de cerâmica em São Caetano do Sul. Ações modernizadoras aceleraram o ritmo industrial da produção de ladrilhos, sem que isso fosse devidamente informado às trabalhadoras. Com a atualização tecnológica, a seção que escolhia os ladrilhos, excluída das decisões que levaram às mudanças, continuou manual, mas subjugada à nova velocidade do maquinário.

Muitos ladrilhos começaram a sair defeituosos, levando tensão às operárias dessa seção, que tiveram dificuldade para cumprir seu serviço. Oriundas de uma comunidade católica, as trabalhadoras creditaram tal fato à presença do diabo na fábrica: o Coisa Ruim teria o jeitão e o sorriso dos engenheiros, que controlavam tudo de cima. Foi demandada uma missa no local e que a máquina de ladrilhos fosse benzida. O diabo desapareceu. Não apenas por conta daquele ato simbólico, mas também pelo fato da máquina ser ajustada para não causar mais problemas.

Essa história foi contada e analisada pelo professor José de Souza Martins em um artigo que se tornou famoso por tratar das consequências da modernização industrial. Segundo ele, quando se separa radicalmente o pensar e o fazer no processo de trabalho, o imaginário pode preencher esse vazio para lhe dar sentido. O demônio apareceu como a figuração da ameaça à humanidade do ser humano pela racionalização extrema do trabalho.

Durante os últimos anos, a empresa Foxconn, que fabrica o iPhone na China para a Apple, enfrentou casos de suicídios de empregados. Em um deles, um jovem de 21 anos se jogou de um prédio da empresa em Shenzen, um dos polos tecnológicos do país – essas histórias estavam entre as que povoaram as reportagens que citei acima. A Foxconn também produz o PlayStation, Wii e o XBox. E tem a Dell, a HP, entre outros grandes, como clientes. Ou seja, se gritar "pega ladrão!", não sobra um, meu irmão.

Antes de ser encurralada e deixar a fase de negação, a Foxconn chamou monges budistas para realizar cerimônias a fim de mandar os maus espíritos para longe. Além, é claro, de fornecer um serviço de atendimento telefônico para receber os trabalhadores depressivos ou potencialmente suicidas. Ou seja, ao invés de melhorar as longas jornadas de trabalho, o pouco descanso, a cobrança exagerada e a baixa qualidade de vida resultante, é melhor emprestar um ouvido para as reclamações e e um abraço carinhoso no final.

A China, como o Brasil, vive a luta entre o antigo e o moderno dentro do mundo do trabalho. E para crescerem rápido e a qualquer preço, relativizam a qualidade de vida e a dignidade do trabalhador. Adaptando o professor Martins, chamar monges na China ou padres em São Caetano do Sul tem o mesmo objetivo de tentar restituir as fábricas ao "tempo cósmico e qualitativo que fora banido com a completa sujeição de todo o processo de trabalho ao tempo linear, quantitativo, repetitivo da produção automatizada".

Mas podemos ir além: qual a diferença entre uma fábrica de ladrilhos de cinco décadas atrás e cortadores de cana que foram obrigados a seguir o ritmo de crescimento de produtividade de colheitadeiras ao longo das últimas três décadas, cortando 16 toneladas diárias onde cortavam oito no passado?

É claro que isso não explica os suicídios (o ato de tirar a própria vida é muito complexo para ser tratado em um post). Mas ajuda a entender o processo de banalização do trabalho e coisificação do trabalhador.

Isso não está apenas na relação arcaico e antigo, mas presente em outras áreas. Em escritórios, por exemplo. Quem já se deparou com um colega cheirando um "cafezinho branco" à noite no banheiro para manter o pique e a produtividade sabe o que estou falando. Mais rápido, mais rápido, mais rápido. Para que? Talvez para espantar o vazio gerado pelo próprio trabalho.

Um vazio com duas pontas. Porque, do lado do consumidor, é a mesma coisa.

O vazio do consumo e o boicote – Quando um novo produto da Apple é lançado, há gente que vara a noite na fila da loja para garantir que será proprietário ou proprietária. E por que o desespero? Só para ser o primeiro? Em termos. A Apple não vende eletrônicos. A Coca-Cola não vende refrigerantes. A Ford não vende carros. Comercializam estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim.

Construção essa que vem, não raras vezes, de cima para baixo.Empacotam capacidades, características, sentimentos que, por fim, compramos – uma vez que nos é negado o tempo necessário para desenvolvê-los ou cultivá-los.

Serei legal se tiver algo legal.

O iPhone 5 trouxe as balizas para vivermos até o lançamento do iPhone 6. Para muita gente, através da aquisição de um produto, obtemos o pacote simbólico que ele traz consigo e que faz a roda da vida continuar girando.

Considerando esse processo simbólico, no qual todos estamos incluídos, é difícil imaginar longos boicotes contra mercadorias envolvidas com problemas sociais, ambientais e trabalhistas que tenham se tornado, digamos, "estruturantes", parte do nosso "sistema operacional".

Essa discussão sobre boicote faz parte do meu dia a dia como jornalista, pesquisador e consumidor proprietários de produtos da Apple, pois acredito que ela tenha alcance limitado – pelo menos hoje.

Quando adotado, possui mais chance de sucesso quando ocorre para legitimar outras ações que já pressionavam determinada empresa a mudar de comportamento, principalmente através da apreensão causada aos seus investidores e financiadores sobre o risco que a inação diante de um problema causará.

O "momento em que se sente medo da possível perda de clientes" consegue ser mais eficaz do que o "momento em que se percebe que houve perda de clientes" – pois sempre se constata que ela foi menor do que poderia ter sido. Pesquisas aqui e mesmo na mais-consciente-mas-nem-tanto Europa mostram que o consumidor é sim um tremendo de um garganta. Atua bem menos do que fala nesses casos. Normalmente, apenas enquanto o caso está na mídia, que é, portanto, a janela de oportunidade para ação.

O que fazer como consumidor  – Nossa vida se ajustou ao que as empresas de tecnologia nos ofereceram – e não o contrário.

É muito difícil ser uma pessoa que trabalha com informação em tempo real sem um smartphone ligado à internet. Sou consumidor de produtos de várias marcas envolvidas em denúncias de superexploração e, quando fiquei sabendo das primeiras notícias, integrei-me a grupos que pressionam as empresas por soluções.

E, como jornalista, passei a escrever sobre o assunto, pois tenho ciência da posição privilegiada de mediação de informação que (momentaneamente) tenho na sociedade. Sei que, neste caso, migrar de aparelho adianta pouco, pois boa parte das marcas de vanguarda em tecnologia de comunicação possui os mesmos problemas trabalhistas em suas linhas de montagem ou em suas cadeias produtivas. Na Ásia ou em qualquer lugar.

Como já disse em um texto semanas atrás, para chorar de tristeza, veja como são extraídos, ao redor do mundo, os minerais que fazem os componentes de nossa revolução digital.

O que estou tentando explicar é que, em certos casos, é possível fazer pressão sendo consumidor de determinada marca. É mais difícil do que aquele que simplesmente deixa de comprar, porque você tem que acompanhar, cobrar, mandar e-mail, aporrinhar, conversar com outros consumidores, forçar uma mudança no comportamento.

Dar as costas nem sempre funciona. Porque o poder de propaganda de determinada marca é e será por muito tempo maior que a nossa capacidade de se organizar contra ela. E é difícil manter o boicote puro, no dia a dia, com produtos "estruturantes". Tem gente que acha que muda o mundo porque deixou de beber Coca-Cola.

Simbolicamente, para ela, sim, é até reconfortante no ajuste de sua culpa pessoal. Mas se isso não for organizado de forma coletiva, conscientemente, torna-se pouco útil.

Uma das propostas sempre colocadas à mesa – e que acho válida – é aumentar o preço de determinados produtos. Eu aceito pagar R$ 20 a mais no preço de um celular, se a Apple topar reduzir, por exemplo, o dobro desse valor em margem de lucro por aparelho, e esses R$ 60 forem destinados a melhorar os salários e condições dos trabalhadores. Isso já foi possível com trabalhadores do tomate que melhoraram suas condições de vida quando alguns centavos foram acrescentados ao preço do ketchup nos Estados Unidos.

Mas é importante lembrar sempre que a responsabilidade principal não é do consumidor.

Até porque nada do que discuti acima está nos manuais dos produtos que compramos. Não contam isso nas propagandas, pelo contrário. Escondem. Normalmente, essa informações vêm à tona quando o jornalismo as garimpa ou quando são descobertas e espalhadas por consumidores em redes sociais.

E já que estamos falando de tecnologia, seria ótimo se iPhones viessem com um aplicativo para podermos acompanhar a evolução da qualidade de vida dos trabalhadores envolvidos na produção do lote do telefone em questão – como já sugeri aqui antes.

Ele poderia contar com um canal de comunicação entre os trabalhadores das fábricas da Foxconn, em que cópias das reclamações entregues à empresa por seus funcionários chegassem ao consumidor com a resposta e a ação tomada pela empresa. Também traria dados que mostrassem a evolução ou o retrocesso dos indicadores trabalhistas de cada unidade, incluindo jornada de trabalho, horas de descanso, saúde e segurança, trabalho infantil ou forçado, enfim. Tudo com visualização amigável, plugins para postagem em redes sociais e traduzido para outras línguas porque eu não falo mandarim.

Já que a Apple, como toda grande corporação mundial, procura controlar aspectos da nossa vida, nada mais justo que criar um pequeno mecanismo de contrapeso democrático para ficarmos de olho nela também.

A empresa diz que melhorou na questão de jornada de trabalho e de tratamento aos trabalhadores e os dados da Fair Labour mostram que em algum nível isso aconteceu. Mas a situação continua tão gritante que, apesar das conquistas, vai levar algum tempo para o sistema de produção não só dessa marca, mas de todos os aparelhos eletrônicos, saírem da lama.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.