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Leonardo Sakamoto

Quantas vezes matamos "Jesus" de fome com nossa complacência?

Leonardo Sakamoto

24/12/2014 09h46

Maria deu à luz sob o olhar insuspeito de uma vaca e um jegue – figurante sempre presente nessas ocasiões há quase dois mil anos.

José acompanhava a cena de perto, amparado pelas paredes de barro e um cigarro de palha. A fumaça esbranquiçada fugia pela porta e fundia-se à paisagem queimada de sol. E a pele do bebê à lavoura, que morreu ainda no pé por carência d`água. Mal presságio.

Ao contrário da outra criança – do outro José com a outra Maria – não recebeu reis, muito menos presentes. Compartilhavam, porém, o fato de seu destino já estar escrito.

Os anos se passaram e ela cismou em ficar do mesmo tamanho. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambos. Certo mesmo é que adoeceu.

O pai, desesperado, correu de um lado para o outro e levou-a para se tratar. Diarreia, olhar longo, profundo, perdido. Os doutores fizeram o que podiam naquela altura das coisas e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Mas sabiam que de nada adiantaria, pois há tempos a fome vinha comendo-a por dentro.

Então, José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: pedir uma caixão emprestado, prática comum por aquelas bandas.

Como repórter, a gente esbarra com histórias que, particulamente, não gosto de contar ou recontar. Mas parece que a vida não se importa de repeti-las, com outros nomes e em outros lugares.

Tanto que a cena se reproduziria mais cinco vezes na família Bezerra, no sertão de Alagoas.

Outros personagens, mesmo roteiro.

Assim como eles, muitos Josés e muitas Marias ainda enterraram a fome de seus filhos. E ainda chegam notícias de que o motivo disso tudo são as secas, que castigam o sertão de tempos em tempos – o que não poderia ser mais equivocado.

Os simples cordéis, pendurados nos varais das feiras livres das pequenas cidades do interior nordestino aos finais de semana, contam mais a verdade.

Remexendo neles, achei um que exemplifica:

Doutor, vixe, água não é o problema!
Aqui com a seca e com jeitinho nós se arresolve
O que dói mesmo e é difícil de entender
É a falta de terra, disso ninguém se comove
Falta não, me corrijo antes de tudo
Tem muita por aí, mas é do coroné o seu uso

De acordo com relatório divulgado pelo IBGE neste mês, o Brasil tem 7,2 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave. Mesmo com a significativa queda de 11,2 milhões, em 2009, ainda assim o número assusta. Porque estamos falando de fome.

Em se tratando de mundo, de acordo com as Nações Unidas, uma em cada oito almas sofrem de desnutrição crônica.

Os programas sociais de distribuição de renda e suas ações correlatas, além das atividades de organizações da sociedade civil como a Pastoral da Criança, melhoraram o quadro por aqui. Sem contar a geração de empregos e a própria estabilidade econômica.

Não é tão difícil reescrever o fim das histórias curtas, que se encerram precocemente, como as de José e Maria. Avançamos, mas precisamos fazer a parte que falta para que a história mude de vez e casos de desnutrição infantil seguidos de morte não ocorram.

Uma reforma agrária decente e a garantia do direito à terra aos povos indígenas e às comunidades tradicionais já seria de grande ajuda, por exemplo.

Essas famílias podem até ser ignoradas pelo "céu", que não manda a chuva, mas se estrepam mesmo é com a ação direta do pessoal de carne e osso (que está de olho em suas terras ou sua força de trabalho), a inação do Estado e a complacência de muitos de nós.

Enfim, Feliz Natal a todos e todas que não ficam apenas na boa vontade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.