Topo

Leonardo Sakamoto

Deve ser muito ruim ser policial consciente em dia de manifestação

Leonardo Sakamoto

24/01/2015 08h59

Este post é sobre comportamento policial. Toda vez que toco no assunto, chovem mensagens prometendo sessões de tortura e outros afagos. Então, vou desenhar:

Assunto: Violência policial
Alertas:
1) Contém discurso sobre desmilitarização da polícia – o que não significa demissão de trabalhadores, mas a mudança na formação, nos métodos, na estrutura e nos processos internos;
2) Um dos que mais sofrem com as atuais estrutura e filosofia da polícia é o próprio policial – que ganha uma merreca e morre para defender o dos outros, acatando ordens sem sentido;
3) Policiais não são todos zumbis sem opinião que concordam em jogar os cachorros em cima da população. Esse é o comportamento de parte dos comentaristas de internet. Não raro, policiais que reclamam ou se organizam por melhores condições de trabalho e salários sofrem sanções;
4) Este post contém ironia.

Pronto, tendo explicado as intenções, vamos ao tema. Acompanhe o seguinte raciocínio comigo:

Uma multidão chega em um local, atrapalhando a ordem estabelecida das coisas, através de uma manifestação. Mesmo que o objetivo não fosse esse.

O poder instituído, seja ele qual for, acha uma ousadia isso e nega-se a entender o significado ou a conjuntura daquilo, reagindo de forma irracional, sem pensar nas consequências.

As imagens da violência policial decorrentes disso são transmitidas e repetidas à exaustão.

Determinados grupos que estavam fora da primeira ação resolvem se manifestar contra a resposta violenta do poder instituído, seja juntando-se à ação inicial, seja ressignificando-a, que passa – a partir daí – a ter contornos muito maiores que o do grupo que a começou.

Daí, aspones que fazem as funções de conselheiros reais dos mandatários interpretam a realidade como uma criança de um ano e sugerem medidas que só espalham o caldo, dando mais liberdade a quem quer descer a porrada.

De olho na audiência, muita gente, jornalistas de veículos tradicionais ou alternativos, vai retroalimentando o processo, cavando, criando.

O caso chega em Brasília, onde os políticos e aspones do governo e da oposicão reúnem-se para tratar do tema sob a ótica eleitoral.

Moral da história: multidão não dispersa com porrada. Se reproduz. É igual a tentar afastar um gremlin chato com um jato d' água.

Em São Paulo, por exemplo, foi assim, respeitando as devidas proporções e características, na porrada da marcha da maconha em 21 de maio de 2011, na porrada da manifestação do Movimento Passe Livre, em 13 de junho de 2013, na porrada no rolê dos jovens no shopping Itaquera, em 11 de janeiro de 2014, entre outras datas.

Em suma, em todos os casos, a reação da polícia foi responsável por aumentar aquilo que ela afirmava que era seu dever coibir.

Deve ser uma estratégia nova. Estratégia, em grego, strateegia, em latim, strategi, em francês, stratégie, em inglês, strategy, em alemão, strategie, em italiano, strategia, em espanhol, estrategia…

O que me leva a crer que parte da polícia e de nossos governantes gostam mesmo é de um bom fuzuê.

A manifestação contra o aumento nas tarifas de ônibus, metrô e trens, organizada pelo Movimento Passe Livre, nesta sexta (23), terminou – novamente – com a polícia tentando queimar o estoque de bombas e balas de borracha que estava provavelmente para vencer. Pessoas saíram feridas.

A justificativa é de que rojões foram lançados contra os policiais.

Fico preocupado quando ouço esse tipo de coisa. Será que a polícia paulista é tão ruim que não consegue segurar a onda por conta de meia dúzia de celerados que jogam pedras e rojões (sejam eles parte da manifestação ou infiltrados com a função de causar) sem sangrar os presentes? Isso é medo, incompetência ou má fé?

A polícia tem que ser mais fria que o cidadão em um protesto. Se a sua missão for garantir a segurança de todos, ela deveria cumprir isso evitando o confronto. Engolindo mais sapos se for necessário, afinal ela não está em guerra com a sua própria gente.

Como já disse aqui antes, policiais não são monstros alterados por radiação após testes nucleares em um atol francês no Pacífico. Não é da natureza das pessoas que decidem vestir farda (por opção ou falta dela) tornarem-se violentos. Elas aprendem. No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua herança mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter o status quo.

Investido de poder para cumprir essa missão, o policial é condicionado a não ser contrariado ou atacado. Foi hostilizado por dependentes químicos? Manda bomba. Recebeu uma resposta atravessada em uma blitz? Esculacha. E manda bala sob a justificativa de ter sido atacado com um estilete.

O problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel e os métodos da polícia em nossa sociedade. Setores da polícia estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras. Outra parte sabe que a mesma sociedade está pouco se lixando para eles e suas famílias, pagando salários ridículos e cobrando para que se sacrifiquem em nome do patrimônio alheio.

Conversei com um soldado da Polícia Militar que disse detestar atuar em manifestações. Fica nervoso com provocações de alguns manifestantes, mas acha pior ainda ter que ir para cima da "criançada", como mesmo descreveu. Para ele, isso não faz sentido.

Da mesma forma que não faz sentido o "genocídio" dos jovens pobres e negros nas áreas pobres das grandes cidades pelas mãos do tráfico, das milícias e da polícia.

Sei que a justificativa do "estou cumprindo ordens" não cola desde Nuremberg. Mas, neste caso, a discussão do "estou sobrevivendo" e do "ué, mas sempre me disseram que essa era a forma correta de agir" se entrelaçam de forma complexa. Pois, para muito policial que discorda dessa situação, a saída é sofrer sanções disciplinares ou pedir demissão.

Seria, portanto, muito fácil para mim, da classe média alta de São Paulo, dizer a eles o que deveriam ou não fazer diante desse impasse.

Mas isso não impede de cobrar a desmilitarização da polícia aos administradores públicos e responsabiliza-los pela violência estatal. Afinal, são eles que mantém uma política de controle da população valendo-se de uma massa de pessoas obrigada a aceitar ordens bizarras para não perder o emprego.

E a esconder a farda quando voltam para a periferia. Porque, em último caso, eles e elas estão sós.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.