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Leonardo Sakamoto

Apple: vivemos o momento em que uma marca se transforma em religião

Leonardo Sakamoto

19/04/2015 10h58

Quando, daqui a dois séculos, analisarem os sinais da derrocada da nossa civilização de consumo desvairado, certamente cenas protagonizadas nas portas de lojas da Apple serão resgatadas pelos historiadores.

Para marcar o momento em que a marca virou religião.

Gritos de "São Paulo", "Morumbi" e "abre" foram entoados pelas cerca de mil pessoas que aguardaram na fila pela abertura da primeira loja da Apple em São Paulo, localizada no Shopping Morumbi, às 10h deste sábado (18), segundo reportagem da Folha de S.Paulo.

Parte dos que estavam na fila não compraram nada, apenas queriam estar lá. O primeiro, por exemplo, chegou ao Shopping às 18h de sexta.

Quando a primeira loja da Apple abriu no Brasil, mais de 1700 pessoas fizeram fila para a abertura, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, em fevereiro do ano passado. Desses, 163 viraram a madrugada nas dependências do shopping para serem os primeiros a entrar. Houve momentos de jogo de futebol, com consumidores gritando "Apple, Apple, Apple!" e até volta olímpica de vendedores.

E essas cenas se repetem em todos os lugares: da China aos Estados Unidos.

Quando passei a me entender por gente, havia quem acampava na fila para ser o primeiro a entrar em um show de rock – o que também, convenhamos, é uma esquisitice sem tamanho. Mas, vá lá, é rock. Agora, é para ter um produto.

Adoro tecnologia e sou consumidor de produtos da marca (hipócrita, esquerdista caviar, ostentador, burguês mentiroso, mimimi!… Enfim, fala com a minha mãozinha se você que acha que ser de esquerda é fazer voto de pobreza), portanto não serei eu a criticar quem compra. O problema é fazer isso de forma acrítica. Sem contar que acho fascinante o comportamento de querer ser o primeiro a possuir determinada mercadoria ou a frequentar um templo de consumo.

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Tomo a liberdade de resgatar uma discussão já travada aqui, mas que continua atual. Para alguns, um smartphone ou um notebook é um instrumento de trabalho ou diversão – muitas vezes desnecessário, é claro. Afinal de contas, me pergunto se estes aparelhinhos do meu lado trazem facilidades para minha vida diária, criam necessidades que nunca imaginei que tinha ou me escravizam aos seus caprichos. Depois, baixo um app tchap-tchura e esqueço a discussão.

Para outros, é um elemento que ajuda a dar sentido às coisas, contribui na formação da imagem que temos de nós mesmos e fornece um símbolo para que a comunidade reconheça o seu dono como um de seus membros. Praticamente uma carteira de identidade.

Vocês se lembram daquele pessoal com cérebro de minhoca que jorrou preconceito nas redes sociais quando o Instagram se tornou acessível aos usuários de Android? Alguns detentores de iPhone reclamavam que a rede social de fotos iria virar coisa do populacho, uma vez que os telefones que possuem esse sistema operacional são mais acessíveis. Tem o mesmo DNA da frase "este aeroporto está virando uma rodoviária".

São a versão moderna do sujeito que reclama que a calça de grife dele agora está em desconto, o que fará com que mais pessoas a tenham, perdendo – portanto – a exclusividade – razão final que o levou a adquirir tal peça. Não é a qualidade do produto que está em jogo, mas o que ele significa socialmente.

Até porque, como sabemos, muitas vezes um preço de grife tem pouca relação nenhuma com custos de produção, mas serve para segregar.

Se não concorda, explica isso para a senhorinha boliviana escravizada que recebeu dois mangos para produzir uma saia vendida por setenta vezes esse preço de uma marca chique de roupas.

O escritor Ferréz, que também é dono de uma marca de roupas na periferia de São Paulo, um dia me relatou que responsáveis por grifes caras que são objetos de desejo lhe perguntaram como fazer para que a rapaziada dos rolezinhos deixasse de consumir essas marcas. A associação entre essa gente pobre e as grifes estava afetando a imagem diferenciada, sabe como é.

Marcas de eletrônicos, de refrigerantes, de carros não vendem eletrônicos, refrigerantes e carros mas, sim, estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim. Construção essa que vem, não raras vezes, de cima para baixo e não discutida de forma democrática.

Já comentei aqui antes que a busca pela felicidade passa cada vez mais pelo ato de comprar. E a satisfação está disponível na lojas a uma passada de cartão de distância. Muitos de nós ficamos tanto tempo trabalhando que nos tornamos compradores compulsivos de símbolos daquilo que não conseguiremos obter por vivência direta. Através desses objetos, enlatamos a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco, o tempo de sua obsolescência programada.

Ao mesmo tempo, considerando que o acesso à cidadania no Brasil está se dando pelo aumento no poder de consumo, adquirir um produto de uma marca valorizada significa ser reconhecido como cidadão. Quando seria o acesso aos serviços básicos da pólis o que faria de mim e de você reais cidadãos.

Por fim, aos que consideram certas marcas como religião, e seus fundadores deuses, defendendo que consumidores não podem reclamar de produtos se optaram por sua compra, em um comportamento que lembra e muito a ditadura do "Ame-o ou Deixe-o", pergunto: ao votar em alguém, você dá carta branca a essa pessoa ou adota um postura crítica?

Por que com corporações tem que ser diferente? Lembro que ao fazer uma crítica sobre a repercussão da morte de Steve Jobs, fundador da empresa neste blog, sofri ameaças e insultos com ose eu estivesse chutando uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Criticar uma marca de preferência até que ela resolva os problemas técnicos, sociais, trabalhistas, ambientais e éticos relacionados a ela é fundamental.

Pois, melhor encarar o consumo como ato político, de escolha, responsabilidade e monitoramento, do que como ação religiosa, de entrega, devoção e fé.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.