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Leonardo Sakamoto

Terceirização: retroceder em direitos é um ato de violência institucional

Leonardo Sakamoto

22/04/2015 11h44

Enquanto o Congresso Nacional segue analisando e votando o projeto que amplia a terceirização no Brasil, a guerra de informação corre solta na internet.

Muitos dizem que o projeto vai colocar o Brasil na vanguarda das relações de trabalho em todo o mundo. Na verdade, não vai. Claro que é necessário garantir que a terceirização seja regulada por legislação para proteger as categorias em que ela já é legalmente autorizada. Mas não que essa legislação aproveite para retirar direitos de todos os trabalhadores, como é o caso da autorização para a terceirização de todas as atividades de uma empresa.

Pedi para o juiz do trabalho e professor de direito Marcus Barberino comentar exatamente isso: o Brasil vai ser vanguarda com a nova lei da terceirização? Segue a resposta:

O Brasil tem regulação do trabalho. E ela não é extensa e protetora como se pensa, pois a maioria das regras da CLT tratam do direito processual do trabalho e da organização do Estado, inclusive o poder de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Enquanto isso, a maioria esmagadora dos processos trabalhistas do Brasil tratam de temas como jornada extraordinária e não pagamento de salários. Todos os países ocidentais têm regras duras para isso. E em todos, salvo na América Latina, respeita-se minimamente o limite de oito horas de jornada, por exemplo.

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Portanto, ao contrário do que alguns afirmam, a regulação do mercado de trabalho não se relaciona com a intensidade da dinâmica capitalista. Ter ou não ter regras de proteção não é o variável dominante. A legislação do trabalho brasileira se tem um norte é a fragmentação e a desigualdade.

Por exemplo, a jornada dos advogados empregados é de quatro horas diárias. Parece-me que a redução da jornada de trabalho histórica deveria estar no contexto de uma ampla pactuação. Mas há estamentos brasileiros que adoram a regulação fragmentária. A clientela mais poderosa se abastece de regras que lhe são favoráveis como grupo ou como indivíduos desse grupo (a pejotização dos jornalistas se encaixa aqui, pois o grande amplia seu poder sobre os pequenos e os pequenos não participam do fundo público social e ainda se vitimizam).

O Brasil foi um dos países que mais cresceu no século 20. Como a Alemanha. Por lá, o direito do trabalho legal é rígido, mas não é muito extenso. Contudo, troco ele pelo nosso em dois segundos. Pois as instituições desse direito do trabalho são protetivas e articuladas com o contrato coletivo de trabalho nos setores econômicos.

Por outro lado, um monte de países africanos não sabe o que é direito do trabalho, nem regulação do mercado de trabalho. Seus salários são baixíssimos e nem por isso há dinâmica capitalista por lá que vá além de economias de extração.

Estamos vendo nos noticiários centenas de imigrantes africanos morrendo em tentativas de chegar à Europa e conseguir trabalho. Ninguém migra fugindo de leis trabalhistas de seus próprios países como afirmam alguns. As pessoas fogem é da desesperança e da miséria. Por isso, tantas pessoas migram ou tentam migrar para Europa, EUA e Brasil. O ser humano foge em busca de bem estar e segurança, de renda e, naturalmente, de sonhos que fazem a nossa saúde psíquica ficar alerta.

A Suécia é um dos países mais dinâmicos do mundo e tem leis sociais e tributárias duríssimas. O ponto que me parece relevante é que todos esses países criaram uma estratégia nacional em que capital e trabalho estavam de algum modo partilhando o Estado e cooperando. Os ajustes de cooperação são vários.

Do ponto de vista da demanda agregada, o fator mais significativo é que o direito do trabalho funciona como estabilizador da renda nacional. Ele auxilia as decisões macro-econômicas a evitar ampla flutuação da atividade e o rebaixamento da renda disponivel para o consumo.

É fato que a regulação tende a envelhecer e perder eficácia. Daí a necessidade de sua constante revisão. Mas me parece que se deva manter a ideia central, quer de proteção mínima, quer de estabilizador da renda nacional. Fazer ajuste para retroceder ao tempo do século 19, como é o caso do projeto que amplia a terceirização em discussão no Congresso Nacional, é flertar com a violência institucional.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.