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Leonardo Sakamoto

Louco não é quem diz bobagem. Louco é quem faz o povo de bobo

Leonardo Sakamoto

25/04/2015 16h32

Adoro as figuras antológicas que, avessas à luz do dia, brotam de forma mágica – para o nosso espanto e maravilha – em auditório e anfiteatros.

Fui palestrante em um evento sobre trabalho escravo contemporâneo na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nesta sexta (24). E, fugidas de um filme B da vizinha Hollywood, todas as figuras resolveram aparecer, lá, de uma vez.

Um senhor de cabelos muito brancos tentou me convencer a comprar um revólver. "Você que é jornalista, espalhe: todos devem andar armados. Só assim, não serão escravizados."

Outro exigiu firmemente que eu me desculpasse, em nome do Brasil, pelo desmatamento na Amazônia. Eu disse que topava, se ele pedisse desculpas por Abu Ghraib, Guantánamo e, é claro, Hiroshima.

Outra interrompeu uma palestrante estrangeira e perguntou de que "tribo" ela vinha e de que "raça" era ela, uma vez que não entendia nada da "sua língua".

Nessas horas, lembro-me de Gil Vicente, no seu Auto da Barca do Inferno. Que os parvos, desprovidos de tudo, sinceros e sem malícia, são os que conseguem driblar o diabo e até injuriá-lo. Consideram-se ninguém e por serem honestos sobre si mesmos e o mundo, são conduzidos ao paraíso.

Já o nobre, o religioso, o juiz, o advogado e, é claro, o mestre de ofício, são condenados ao fogo do inferno…

Lembrei-me disso ao ler sobre comentários de alguns políticos brasileiros em espaços públicos. Menos pitorescos quanto a galera simples que flana em palestras, eles também parecem não se importar com o nonsense.

Por exemplo, algumas lideranças governistas que, durante muito tempo, não se manifestaram para engrossar os apelos de movimentos sociais e minorias pela adoção de políticas que significariam garantias de direitos sociais, agora dizem em palestras ser necessário as esquerdas se unirem para defender a democracia. Ou seja, o mandato presidencial.

Dou uma sugestão para unir as esquerdas: interrompa a construção de hidrelétricas na Amazônia e a remoção forçada de populações tradicionais; comece uma reforma agrária de verdade e uma reforma urbana decente; garanta às comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, caiçaras, de fundo de pasto seus territórios; pare de retirar direitos trabalhistas e previdenciários e tente a aprovação de projetos para taxar grandes fortunas e grandes heranças; deixe de minar o combate ao trabalho escravo e fortaleça o combate ao trabalho infantil; inicie um processo nacional para desmilitarização das polícias; garanta o veto ao projeto que amplia a terceirização para todas as atividades de uma empresa se ele passar no Congresso Nacional. Ao menos, tente tudo isso.

Não garanto que, com isso, haverá salvação. Mas pensem nisso como uma forma de quitar uma dívida com as promessas de campanha.

Para alguns, tudo isso é mais idiota que loucuras de palestra. Mas, para outros muitos, loucura é trabalhar para enriquecer o país, mas viver na pobreza. E ouvir pedidos de "paciência" de seus governantes.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.