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Leonardo Sakamoto

Nesta noite, sonhei que Eduardo Cunha sequestrava meu busão

Leonardo Sakamoto

26/05/2015 15h17

Gente, sonhei com o Eduardo Cunha.

Alguns não vão acreditar, mas não me importo.

Não tenho orgulho disso, não é algo que quero lembrar, nem contar para meus netos.

Mas como a gente fica o dia inteiro em cima desses assuntos, eles se transformam facilmente em sonho (ou pesadelo), ainda mais depois de um bifão ingerido pouco antes de dormir – coisa que meus amigos vegetarianos diriam que é a vingança do boi.

No pesadelo, subi num busão que ia para a Estrada do Campo Limpo (alô, ZS!). Neles, vários deputados, senadores, jornalistas, empresários, sindicalistas e outros "cidadãos de bem".

Cochilo e, quando acordo, percebo que a bumba não estava indo para lá, mas girava em círculos em torno do Congresso. Corri até o motorista e percebi que ele havia sumido e, em seu lugar, estava Eduardo Cunha, de terno e bem alinhado. Ele anunciava em um alto falante que, ao completar sete voltas, a reforma política estaria aprovada.

No lado de fora, um border collie corria ao lado do ônibus (adoro border collies).

Desesperei e tentei encontrar uma cordinha, um botão, mas nada. Fui até ele, disse que vivíamos em uma democracia e era sua obrigação abrir a porta. Ele riu, na verdade, todo mundo riu. Nisso, minha mãe apareceu do fundo do busão e disse para eu não ser malcriado e ir sentar que o moço sabia o que estava fazendo, no que obedeci (isso, é claro, vai tomar algum tempo na terapia…)

De repente, alguém gritou no ônibus que faltava colocar o harakiri na reforma política. No que todos, aparentemente, discordaram.

Ao completar as sete voltas, ele parou. Brasília tinha voltado décadas no tempo, as avenidas eram de terra e os principais prédios ainda inacabados, em construção.

Todo mundo se abraçou e desceu do ônibus para comer naqueles carrinhos de rua que vendem salada de fruta em Brasília. Eduardo Cunha pegou uma lata de leite condensado, bebeu inteira de uma vez e se foi.

Daí apareceu uma urna eletrônica no carrinho das saladas de fruta e ele era candidato a presidente. Todos pegavam uma salada e votavam nele.

Fiquei desesperado porque não conseguia voltar para o Campo Limpo, onde meus pais moram, e decidi retornar andando.

Acordei suando feito um porco (vai, Palmeiras!) gordo. E corri para escrever o pesadelo.

Refletindo sobre o pesadelo, debrucei-me sobre o harakiri.

Nos meus anos de "nihongako" (aquela escola de japonês que os descendentes acabam sendo obrigados a fazer quando crianças), ouvi pela primeira vez falar do harakiri – o suicídio ritual realizado para evitar ou compensar a perda da honra da família devido a uma burrada que o sujeito fez.

Uma espada é enfiada no ventre, rasgado em forma de cruz. Violento, mas esteticamente delicado.

Em 2007, o ministro da Agricultura do Japão Toshikatsu Matsuola cometeu suicídio, não com uma lâmina afiada, mas através do enforcamento. A razão são os escândalos de corrupção e mau uso de recursos públicos em que estava envolvido.

O harakiri foi muito usado após a Segunda Guerra Mundial por militares que negaram a rendição por não aguentarem ver o império que não perdia uma guerra havia mais de 2 mil anos reduzido a cinzas.

Ainda hoje, o ritual é praticado por diretores de multinacionais e outros altos postos. A discussão se isso é um ato de coragem ou de covardia é longa, por isso nem irei adentrar nessa seara.

No Brasil, o mais próximo disso talvez tenham sido os mergulhos para a morte feitos pelos investidores e barões do café do alto das sacadas de seus casarões na avenida Paulista, quando houve o crack da bolsa de Nova Iorque em 1929, e a cafeicultura viveu tempos de horror.

Mas o que aconteceria se o harakiri fosse adotado por aqui, dados os dias interessantes em que vivemos? Diante das sucessivas notícias sobre corrupção, temo que não haveria espadas (ou navalhas) suficientes para tantos empresários e políticos envolvidos nos escândalos.

No período FHC-Lula-Dilma, tivemos, por exemplo, a compra de votos de congressistas para a emenda da reeleição, o dinheiro que rolou no processo de privatização de estatais, mensalões, trensalões, sanguessugas, petrolões…

Os suicídios em massa também causariam um impacto na economia: alguns restaurantes de São Paulo, Rio e Brasília, onde negociatas são fechadas a vinhos e conhaques caros, cerrariam as portas.

Pessoalmente, acho o harakiri uma tremenda de uma besteira. Mas, para ele ocorrer por aqui, muitos dos envolvidos teriam que saber o que é vergonha e honra, o que está longe de acontecer.

Enquanto isso, o busão conduzido por Cunha vai continuar dando voltinha em torno do Congresso, para a alegria de poucos e a desgraça de uma massa que, catatônica, aplaude tudo – sonhando com os dias melhores presentes nas promessas de quem tem assento no ônibus.

Eu vou fazer a minha parte: nunca mais como muita carne antes de dormir.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.