Topo

Leonardo Sakamoto

No Líbano, ONG é criada para defender os patrões de empregadas domésticas

Leonardo Sakamoto

24/07/2015 11h06

É o Líbano. Mas, por um momento, lendo os discurso de patrões que não querem perder seus privilégios diante de uma situação reconhecida mundialmente como de negação aos direitos, pensei que fosse o Brasil. Com a diferença que, no Brasil, devemos avançar um pouco com a nova lei das trabalhadores empregadas domésticas. E a maior parte dos explorados ainda é local, no que pese estar aumentando a contratação de estrangeiras – que recebem menos e reclamam menos…

Em um momento em que aumentam as denúncias por maus tratos contra trabalhadoras empregadas domésticas no Líbano, uma organização não-governamental foi criada para defender as "famílias libanesas" contra as alegações de abuso e de que patrões seriam sempre culpados. Representantes da "Associação para Proteção da Privacidade da Família e do Trabalhador" afirma que a impressão é de que toda empregada doméstica é tratada injustamente.

A notícia foi trazida, nesta sexta (24), por Ghinwa Obeid, do jornal libanês Daily Star, do qual estou traduzindo alguns trechos.

Membros da Associação para Proteção da Privacidade da Família e do Trabalhador em conferência de imprensa em Beirute (Foto: The Daily Star/Hasan Shaaban)

Membros da Associação para Proteção da Privacidade da Família e do Trabalhador em conferência de imprensa em Beirute (Foto: The Daily Star/Hasan Shaaban)

De acordo com a reportagem, há aproximadamente 250 mil estrangeiras no Líbano trabalhando como empregadas domésticas sob o sistema "Kafala", que vincula a permissão de residência a um empregador específico ou "patrocinador", o que as torna totalmente dependentes deste. Com isso, os abusos têm sido tão frequentes que Filipinas, Etiópia e Nepal teriam proibido seus cidadãos a trabalhar por lá.

Salários baixos, longas jornadas de trabalho, confinamento, trabalho forçado, calotes, abusos físicos são frequentemente reportados. Casos de suicídio de empregadas domésticas são registrados. A matéria diz que a Human Rights Watch reportou que, em média, uma trabalhadora doméstica morre por semana no Líbano de causas não-naturais, como suicídio.

Helen Atala Geara, chefe da nossa associação sugere que está havendo uma campanha sistemática de certas organizações para projetar uma "imagem negativa" das famílias libanesas e culpou a mídia por insuflar o tema.

Maya Geara, outra fundadora, elenca as empregadores como as vítimas. "Nós representamos a voz de mulheres libanesas e donas de casa que consideram isso uma injustiça e estão ofendidas como essas campanhas estão distorcendo sua imagem".

Helen Atala Geara reclama que as campanhas estão fazendo demandas como a retirada do sistema Kafala. Segundo ela, isso não é possível até uma nova alternativa ser criada.

Outra demanda, a proposta de criação de um sindicato de trabalhadoras empregadas domésticas imigrantes foi apresentada ao ministro do Trabalho, que a rejeitou.

"Imagine ter uma trabalhadora doméstica que se torne um membro do sindicato e todo o dia diga a você 'Eu tenho uma reunião e preciso comparecer…' É este o trabalhador que nós queremos?", pergunta Helen Geara.

Ela diz que com a difícil situação econômica que enfrentam algumas famílias libanesas, donas de casa estão sendo forçadas a trabalhar, o que significa que as domésticas se tornam "segundas mães e donas de casa. Ela diz que é necessário ajustar a jornada da empregada doméstica "de forma que ela siga o ritmo da família e não nós o dela".

De acordo com a matéria, por mais que as fundadoras da organização afirmem que queriam o diálogo para encontrar um ponto de equilíbrio, militantes de direitos humanos estão preocupados com o impacto que a organização possa ter na luta para combater os maus tratos e abusos.

"O que tenho medo é de que essa ação seja usada para encobrir a exploração porque há pessoas dizendo 'Nós somos gente boa e nós gostamos delas [das empregadas domésticas]' ", afirma Nizar Saghieh, um conhecido advogado de direitos humanos no Líbano. "O governo, claro, vai usar esse tipo de discurso para encobrir."

(Optei pelo plural feminino porque a esmagadora maioria das trabalhadoras empregadas domésticas, no Brasil e no Líbano, são mulheres. Um dia, ainda vamos resolver essa bizarrice linguística.)

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.