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Leonardo Sakamoto

Enem: Tem vergonha de fazer cocô em público. Mas aceita violência de gênero

Leonardo Sakamoto

26/10/2015 12h44

As pessoas – pelo menos as que cultivam o bom senso – não peidam na frente dos outros ou em ambientes fechados, como um elevador.

Ou, quando soltam um pum, seja por lapso fisiológico ou contingência maior, ficam em silêncio, torcendo para não serem identificadas. Quem nunca peidou em público que atire o primeiro Luftal.

Afinal de contas, liberar flatulências em uma reunião de trabalho, na sala de aula, em uma festa de casamento ou em um velório leva à desaprovação coletiva ou, o que é mais provável, ao injusto escracho e ao eterno estigma.

– Que cheiro é esse, meu Deus! Deve ser o Matias, da Contabilidade. Ele não perdoa.
– Rafa, feijoada não, né? Você produz armas químicas!
– Qual Raquel? A peidorreira?

Então, se agimos assim diante de um mísero e inofensivo pacote de metano, por que o mesmo não acontece diante de rapazes e moças, homens e mulheres que não têm vergonha alguma de expressar o seu mais abjeto machismo na internet?

Neste domingo (25), chorume foi despejado à taxa de vários metros cúbicos por segundo nas redes sociais, quando pessoas revoltadas com o tema da redação do Enem – a persistência da violência contra a mulher no Brasil – demonstraram toda a sua indignação. Para eles, o tema foi "comunista" ou "bolivariano" – provando mais uma vez que, no fundo do poço, tem um alçapão que dá em outro poço.

Li uma miríade de comentários que, orgulhosamente, bradavam que o levar o tema ao Enem é mais uma forma de "doutrinar" os mais jovens (doutrinar a não agredir mulheres?) e que, se o país fosse uma democracia, a redação de uma prova pública não trataria desse assunto – que, segundo esses comentários, é de foro íntimo.

Isso quando não iam direto ao ponto, dizendo que "em briga de marido e mulher ninguém deveria meter a colher" ou que "a mulher que apanha sabe porque está apanhando" ou ainda que "ninguém se lembra dos homens que são enganados por vagabundas".

Enfim, tudo isso é pior que soltar pum em público. A analogia mais próxima é a de que o ser humano em questão resolve cocô diante de milhares de pessoas ao justificar a violência de gênero – algo que já deveria estar extinto, como o machismo. Em outras palavras, gente que, provavelmente, não têm coragem de soltar um pum em um jantar de família não teve o mínimo pudor de baixar as calças e fazer cocô, ali, na frente de todo mundo.

Violência que só será erradicada quando a sociedade como um todo e, principalmente, nós homens, refletirmos sobre as diferentes formas de opressão que impomos e sobre formas de mudar a situação.

Por sorte, a reação a esse atentado à saúde pública foi grande, com muita gente questionando os posicionamentos violentos. E, como já disse aqui neste espaço várias vezes, essa é uma das chaves para trabalhar com a intolerância que grassa por aí: não deixa-la sem resposta.

Pois quando as pessoas conscientes se calam, um espaço para o ódio se espreguiçar e convencer mais pessoas é aberto. Procurar o diálogo educado e embasado com dados, números e fontes confiáveis (fontes confiáveis e não "o texto mandado pelo meu BFF no WhatsApp") pode barrar violentos de plantão e perfis fakes a soldo.

Uma redação não resolve nada, mas ao menos, durante alguns minutos, muitos jovens que nunca haviam refletido mais profundamente sobre o tema tiveram que se debruçar sobre ele. Se foram sinceros ou não, se argumentaram pró ou contra (e dá pra ser contra?), não importa. Tudo isso gerou um debate público, em um país carente desse tipo de discussão.

País que cora de vergonha de soltar pum em público. Mas não de tratar mulheres como cidadãs de segunda classe.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.