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Leonardo Sakamoto

Rico é "sonegador". Pobre é "caloteiro", "vagabundo", "aproveitador"

Leonardo Sakamoto

05/01/2016 11h02

Uma milícia branca armada até os dentes que toma um prédio público no Oregon e promete resistir contra a opressão do governo federal é composta de "ativistas armados". Grupos por direitos civis que fecham vias públicas para protestar contra a violência policial contra negros por lá adotam práticas "terroristas". A discussão sobre esse caso tomou a mídia dos Estados Unidos e Europa e há bons textos mostrando como um "dois pesos, duas medidas" tem sido adotado para aborda-lo. Conhecemos bem essa prática:

Ricos que cometem um crime são "jovens". Pobres que cometem crimes são "menores infratores".

"Manifestantes" são aqueles que fecham avenidas para lutar por algo com o qual concordamos. "Baderneiros" são aqueles que fazem o mesmo por algo sobre o que discordamos.

Empresas que grilam terras públicas são "ocupantes irregulares". Grupos de sem-terra que permanecem em fazendas griladas e pedem sua destinação à reforma agrária são "invasores".

Da mesma forma, proprietários de imóveis mantidos vazios para a especulação imobiliária que devem o seu preço em IPTU atrasado são "devedores do poder público", enquanto os sem-teto que ocupam esses imóveis pedindo sua destinação à moradia popular são "invasores".

Árabe que se mata com bombas pelo corpo é um "fanático" que prova a irracionalidade das culturas não-ocidentais. Um ocidental que sai matando todo mundo em protesto contra política de diversidade social é um "louco".

Rico que deixa de pagar milhões em impostos não é "ladrão". Ele está apenas exercendo seu protesto contra a pesada carga tributária. "Ladrão" é pobre que rouba xampu. De um lado, "sonegador", do outro, o "caloteiro", o "vagabundo", o "aproveitador" que não pagou a mensalidade do carnê da geladeira.

A discussão de qualquer política para regulação de rádio e TV, que são concessões públicas, é "censura e ataque à democracia". Mas quando o novo presidente da Argentina desmonta a agência pública que trata do assunto por decreto, sem passar a discussão pelo Congresso, escutamos um estrondoso silêncio.

A escolha de uma palavra para nomear um fato ou qualificar um fenômeno, parece aleatória, é consequência de uma série de processos na nossa cabeça que evocam experiências vividas, traumas, aprendizados, doutrinações, medos, bloqueios.

Da mesma forma, aquilo que não dizemos, o interditado, fala tanto sobre nós quanto os termos que escolhemos para explicar o mundo. Porque algo não dito tem tanto significado quanto aquilo que é dito pela razões acima.

É possível e desejável ficar atento e frear uma palavra que vem não sei de onde antes que seja dita ou escrita e refletir sobre ela, tentando entender o porquê de você a estar usando e se não haveria um termo melhor, que não fizesse outra pessoa sofrer ou que fosse mais justo com a realidade. Dessa forma, evitamos perpetuar discursos de opressão – que não foram produzidos por nós, mas que nos aprendemos muito bem, transmitidos pela escola, a família, a igreja, a mídia, o trabalho, e para os quais somos instrumentos muito competentes de difusão.

Isso resolve o caso de quem usa essas palavras sem pensar. O problema é que muita gente faz essas opções conscientemente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.