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Leonardo Sakamoto

Crise na água e na energia: E ainda perguntam por que o povo reza tanto

Leonardo Sakamoto

08/01/2016 12h22

Assisti a uma reportagem na TV informando que a população de São Paulo aumentou o consumo em meio à crise de falta de água. Só esqueceram de ressaltar que, neste período, o verão está parecendo um abraço do capeta, em cima de uma grelha, na antessala do inferno. Qual a solução para o calor insuportável? Lencinhos umedecidos?

O governo do Estado de São Paulo (e o seu racionamento de água que incomoda ricos e destroça pobres) alardeou que essa era a pior seca desde os tempos mais primórdios – mimimi que, na verdade, apenas corrobora a sua incompetência.

Ao mesmo tempo, o governo federal tem ignorado em seus planejamentos os estudos e relatórios internos que mostram que as mudanças climáticas afetaram, de forma definitiva, nosso regime hídrico e, portanto, nossa capacidade de geração de energia. E vai jogar para a população o preço, econômico e social, dessa incompetência ou cara de pau.

Agora que o mar virou sertão (o reservatório de Sobradinho está no osso e outras barragens do Nordeste, em situação crítica), começam a ser as caras e poluentes termelétricas para evitar problemas no fornecimento.

E ouve-se aqui e ali os arautos do desenvolvimento (sic) dizendo que, se não houvessem tantos entraves à construção de hidrelétricas, não seria necessário ligar as termelétricas. Ou mesmo viver sob o risco de – mesmo com um sistema elétrico interligado nacionalmente – alguma sobrecarga desligar a TV no meio de um episódio de Making a Murderer.

Convenhamos que a política de geração no Brasil é estruturada na base do medo e da chantagem. Beneficiando empreiteiras financiadoras de campanha e uma visão tacanha do progresso, através da incapacidade crônica de implantar uma remodelação profunda de nossa matriz energética e de atualizar nosso sistema de transmissão, cheio de perdas.

Sobradinho, em Remanso, na Bahia (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Sobradinho, em Remanso, na Bahia (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

No ano passado, Dilma disse que a água que gira as turbinas é gratuita, saudando as hidrelétricas. Antes mesmo da mandioca.

E as comunidades indígenas e ribeirinhas que são impactadas ou deslocadas para a construção de usinas?

E o trabalho escravo nos canteiros de obras de hidrelétricas?

E a criação de novos vetores de desmatamento, o que acentua as mudanças climáticas e a ocupação desordenada do solo?

E os assassinatos de posseiros e sindicalistas em conflitos rurais gerados por essa ocupação maluca?

Se o impacto na população do entorno não vale de nada, então por que não construímos uma usina nuclear onde é hoje o estádio Cícero Pompeu de Toledo, no bairro do Morumbi, em São Paulo?

Uma jovem explorada como escrava sexual em um bordel – um impacto previsto, mas não prevenido na construção da usina de Belo Monte, por exemplo – foi parte da "gratuidade" da água que gira a turbina?

Recapitulando:

– O governante aceita que não há muita coisa que fazer, assumindo que catástrofes e mudanças climáticas são inevitáveis, tornando-se um gerente de crise, contando mentiras e meias-verdades que nem ele ou sua equipe acreditam;

– O governante aproveita o momento de desespero e passa por cima de direitos fundamentais para colocar em marcha políticas  que, sob a justificativa de beneficiar a sociedade como um todo, enriquece alguns e segue a máxima de que a grandeza de Roma foi feita por escravos;

– O governante encara de frente o problema na época das vacas gordas, tendo como referência sempre o pior que pode acontecer. E o que é o pior neste caso: muita água onde não deveria haver e pouca onde deveria ter. Mas faz isso respeitando a dignidade das populações envolvidas.

Em meio a tudo isso, o governo federal, que sabe muito bem a gravidade da situação, adota a cartilha-padrão da falta de transparência e diz que está tudo sob controle ou faz silêncio. Como nos impacto sociais, trabalhistas e ambientais das usinas que constrói.

Depois perguntam por que o povo tem tanta fé.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.