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Leonardo Sakamoto

Zika: Quando "coisa de pobre" bate à porta dos ricos

Leonardo Sakamoto

24/01/2016 18h32

Os mais ricos herdarão a Terra. Que já é deles, diga-se de passagem.

A vantagem competitiva? Ter sempre à mão uma boa dispensa com medicamentos, além de médicos competentes. Há um monte de políticos imortais aí para não me deixar mentir.

Digo parcela da população porque podem comprar remédios de ponta, que funcionam e têm poucos efeitos colaterais, por exemplo. Sucesso garantido graças a exigentes testes realizados à exaustão pelas maiores indústrias farmacêuticas do mundo em milhares de "voluntários" de classes sociais mais baixas.

Afinal, testes de medicamentos envolvendo gente pobre na África que os olhos não veem, o coração não só não sente como agradece.

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A relação de casos letais/investimento em cura é maior nas doenças que acometem a parte rica da população do que a parte pobre. A pesquisa para a busca da cura do câncer recebe muito mais que pesquisas para doenças causadas por parasitas que afetam bilhões e matam milhões.

E quando uma pessoa que tem acesso a recursos privados de saúde fica ruim, há chance maior de cura do que alguém que depende de si mesmo, do poder público e de suas filas. Não me excluo dessa, pois tenho acesso a bons médicos e conto com um bom plano de saúde que já me tiraram do Cabo da Boa Esperança uma série de vezes.

Como já publiquei neste espaço, parte da população vive no século 21 da medicina, enquanto outros ainda engatinham pela Idade Média das esperas em hospitais, dos remédios inacessíveis, da falta de saneamento básico e da inexistência de ações preventivas.

Na prática, quem consegue jogar xadrez com a Morte e enganá-la por um tempo são os mais ricos, que possuem os meios para tanto. Mas os mais pobres, por mais que tenham força de vontade e queiram continuar vivendo, não necessariamente conseguem a mesma façanha.

Vão apenas empurrando com a barriga, apesar de tudo e de todos, ajudando com seu trabalho e, algumas vezes, como cobaias, os que ganharam na loteria da vida a terem uma existência mais feliz.

Se a saúde não fosse tratada como um grande negócio global, mas como um direito humano realmente tutelado pela comunidade internacional, a palavra "prevenção" sairia da frieza dos dicionários e evitaria que algumas coisas saíssem do controle.

Ou seja, que doenças pudessem ser tratadas com a gravidade que merecem quando ainda são "coisa de pobre".

O problema é que, mais cedo ou mais tarde, alguma "coisa de pobre" bate à porta dos ricos. Foi assim com o pânico do ebola e está sendo assim com a zika.

Pois, às vezes, vírus e bactérias cismam em ignorar regras sociais e, sem reconhecer quem são os eleitos pela vida, fazem estragos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.