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Leonardo Sakamoto

Por que criticar ou elogiar os Estados Unidos é blasfêmia por aqui?

Leonardo Sakamoto

08/02/2016 09h01

Tenho uma certa fascinação doentia por observar o comportamento daqueles que veem os Estados Unidos como aquilo que não são, reduzindo um país complexo e plural a uma simplificação barata do que essas pessoas desejariam que ele fosse. Seres que acham que todos os governos de lá são iguais, que todos os intelectuais dizem a mesma coisa, que sua sociedade é monolítica e homogênea.

Normalmente, esse pensamento simplista e maniqueísta está presente em setores da extrema direita e da extrema esquerda brasileiras – que desejam que os Estados Unidos sejam encarados como um farol a ser seguido ou um inferno a ser evitado.

Um grupo tende a achar que os Estados Unidos é um grande Tea Party, com os políticos defendendo desregulamentação, redução de impostos, privatização e mínima interferência estatal. Esquecem que vira e mexe o Tio Sam enterra bilhões de dólares para salvar bancos e montadoras de automóveis (como a gente equivocadamente faz aqui, aliás) e que parte considerável do pensamento extremamente crítico ao modo de produção capitalista, que serve como referência para o debate global, surge de instituições e cidadãos de lá.

Outro grupo responsabiliza cada cidadão norte-americano pelo crimes internacionais cometidos pela Casa Branca e pelo Congresso, esquecendo que, se fizéssemos um paralelo, nós, brasileiros, deveríamos ser punidos pelo trabalho escravo, pelo tráfico de seres humanos, pela exploração sexual de crianças e adolescentes, pelos danos socioambientais na Amazônia, pelos indígenas assassinados na luta pela terra (paro por aqui, pois a capivara é longa). Afinal, somos nós que elegemos os governos que fizeram ou mantiveram tudo isso.

Se você realiza uma crítica à política internacional dos Estados Unidos (críticas que, muitas vezes, são também feitas por muita gente de dentro do Departamento de Estado), você é um comunista safado que detesta a América ou um hipócrita que critica mas usa produtos de empresas americanas. Porque, como todos sabemos, aqui como lá, é ame-o ou deixe-o. Se você defende uma ação tomada por alguma empresa de lá em prol do monitoramento socioambiental de suas cadeias produtivas, você é um porco vendido para o império capitalista, um lacaio do que há de pior na burguesia global. Eu enfrento esses dois discursos rasos quase que diariamente.

Isso quando estamos falando de grupos com pensamento elaborado. Esquisito, bizarro, pitoresco, mas elaborado. Lembrando que boa parte das pessoas nem chega nisso.

Se veem uma foto sua em Nova Iorque (uma das cidades mais intensas e complexas do mundo), não é porque você é pesquisador da New School, conselheiro de um fundo das Nações Unidas (que tem a sede por lá) ou é convidado para dar palestras e participar de reuniões em empresas, universidades e organizações da sociedade civil. Mas sim porque estava na cidade para fazer compras. Por que? Porque é exatamente o que essas pessoas fariam.

Se você está Washington DC, não veio para dar conferência sobre direitos humanos em uma universidade, discutir com o governo norte-americano formas de desenvolver o combate a crimes contra trabalhadores entre os dois países, fazer reuniões com congressistas de lá para explicar que erguer barreiras comerciais a um setor econômico brasileiro como um todo não será útil para resolver o tráfico de pessoas e o trabalho escravo. Não, você foi passar férias e visitar os museus do Smithsonian. Por que? Porque é exatamente o que essas pessoas fariam.

As redes de ódio descobriram que vou aos Estados Unidos apenas muito recentemente, apesar de ser de muitos e muitos anos minha relação com aquele país e ter passado longas temporadas por lá. Acham um absurdo um cara de esquerda ter morado em Nova Iorque – esquecendo, é claro, quem é o prefeito de lá.

Porque um paraíso conservador irreal construído a partir de leituras distorcidas dos Estados Unidos é o local onde parte da extrema direita se espelha para construir seu projeto de Brasil. E porque um inferno irreal e fictício é a referência que parte da extrema esquerda utiliza como identidade reativa para construir o seu discurso para o Brasil.

Temos muito em comum com eles e eles conosco. As pobrezas de Baltimore, do Mississipi ou da Virgínia Ocidental carregam semelhanças com as nossas, com baixo acesso a saneamento, barracos de lata (ao invés dos de madeira das favelas brasileiras) ou preconceito policial. O número de sem-teto em Nova Iorque é maior que em São Paulo. A busca por soluções, pontuais e estruturais, têm passado por diálogos entre sociedade civil, empresas e governos entre ambos os países que o cidadão daqui e de lá, não raro, desconhece.

Recentemente, vi colega de profissão que eu considerava pessoa equilibrada compartilhando conteúdo falso da rede, que dizia que detesto os Estados Unidos. Ou seja, não é apenas questão de gente desinformada. Essa divisão da sociedade em quem vê os EUA como paraíso ou como inferno, que confunde políticas do governo ou de Estado com seu povo e que acha que esse maniqueísmo se aplica tudo acontece como quem passou a ver o debate público como Fla-Flu.

E não se digna a gastar cinco minutos para checar se você disse mesmo a frase que imputam a você ou ela é mais uma mentira.

Sei que tentar se informar mais sobre algo antes de emitir juízo de valor saiu de moda. Mas continua super importante, eu recomendo. Principalmente quando falamos de um país inteiro com mais de 320 milhões de pessoas.

Por fim, invejo os eleitores democratas que poderão votar em Bernie Sanders nas primárias. É provável que ele não seja o escolhido para disputar a Casa Branca.

Mas fico imaginando o bem que faria ao Brasil se um político com chances, apesar de pequenas, de vencer uma eleição presidencial resolvesse adotar um discurso que vai na contramão dos interesses dos muito ricos, peitando bancos e empresas nominalmente, e incendiando a parte das novas gerações que quer mudar o país para melhor.

Ao invés do que acontece hoje, com políticos recebendo, do andar de cima, apoios financeiros, mimos e agrados e mantendo as coisas como elas sempre foram.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.