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Leonardo Sakamoto

Quando chove forte, São Paulo abraça a barbárie do salve-se quem puder

Leonardo Sakamoto

16/02/2016 11h36

Quando as tropas nazistas bateram em retirada, e antes do Exército Vermelho chegar, certas cidades no Leste Europeu experimentaram um período de anomia, no qual não havia ninguém para controlar a aplicação da lei, muito menos lei para ser aplicada.

Mas, ao contrário do que se possa imaginar, em alguns locais não houve o esperado cada-um-por-si-e-o-sobrenatural-por-todos. Os sobreviventes organizaram regras e comportaram-se de forma solidária. Relatos contam, inclusive, a convivência pacífica de soldados alemães feridos que foram deixados para trás.

Não estou querendo dizer que o Estado corrompe o ser humano e sem ele, tudo funcionaria melhor. Também não é uma crítica ao anarquismo – tão belo, utópico e incompreendido.

Pois não estou falando de modelos teóricos que analisam a relação do indivíduo com sua sociedade, muito menos fomentando o protagonismo individual e a substituição do Estado, mas sim sobre a consequência da saída brusca e violenta do Estado em um contexto de conflito armado.

E com isso acabo de escrever a frase mais chata e desnecessária da história deste blog. Parabéns, Sakamoto.

Todo esse blablablá para dizer que basta os semáforos se apagarem em meio a uma chuva mais forte na capital paulista para que um salve-se quem puder se instalasse nas ruas, com cenas de selvageria explícita só comparáveis a disputas de bigas romanas. Na ausência de algo para colocar ordem, resta o caos, mostrando do qual somos feitos.

Enchente arrastar carros na Vila Madalena. A cena já se tornou comum na rua Harmonia (Foto: Monica Maia/DOCFoto)

Enchente arrastar carros na Vila Madalena. A cena já se tornou comum na rua Harmonia (Foto: Monica Maia/DOCFoto)

A responsabilidade pela situação insana dessa foto acima recai sobre a lentidão ou incompetência do poder público para atuar em obras e prevenir inundações. Mas também em alertar enchentes antes que aconteçam. Sim, em outros lugares do mundo envia-se mensagens a todos os celulares que estão em determinada região, avisando sobre o risco de determinadas ruas, ou encaminham-se agentes para bloquear perímetros e fazer desvios antes da chuva acontecer. Isso sem contar um mínimo de planejamento urbano, não deixando que grandes empreendimentos imobiliários ditem como e para onde a cidade deve se expandir, ignorando a drenagem. Mas também inclui certos moradores e seus hábitos bisonhos, que acham que lixo é para ser arremessado para fora da janela do carro, por exemplo.

Dito isso, vale dizer que enquanto o paulistano entra no mar em dias frios e de chuva, na cidade ele tem medo de água. Talvez porque o desejo íntimo dos carros de São Paulo seja nascerem barcos em sua próxima encarnação para poderem navegar pelos rios e córregos que, canalizados de forma não planejada, ressurgem na época das chuvas.

Decerto, essa vontade louca dos automóveis de mergulhar em água suja alimenta o pavor do morador da cidade. Isso exacerba o comportamento já violento dos motoristas, que passam a lutar insanamente, acreditando que sua própria sobrevivência depende de quão agressivos eles podem ser.

Tipo questão de sobrevivência: "ou eles, ou eu".

Um carrinho de bebê, aos trancos, salvou-se de ser atropelado por um possante prateado – que ainda teve a pachorra de abrir o vidro para xingar uma mãe de guarda-chuvas por atravessar em faixa de pedestres num dia molhado – lembrando "O Encouraçado Potemkin". Eisenstein nem precisaria da escadaria para filmar por aqui. Afinal, o desejo dos carros da cidade não é de ser qualquer barco e sim naus de guerra.

Provavelmente acontece também em outras cidades, mas é engraçado como se dissolve em água feito vitamina C efervecente aquela tese da nossa gloriosa elite de que o nível de consciência da cidadania é diretamente proporcional à renda. De Fuscas a BMWs, a insanidade não vê classe social.

Nesse momento, quem está de carro libera seus demônios mais sinistros, achando que está na iminência de ser tragado pelo bueiro mais próximo. Se estivéssemos falando apenas de moradores de encostas de morro ou de fundos de várzea, entenderia perfeitamente o desespero. Mas muitos que não estão perto de uma área de risco, ignoram regras básicas de cidadania e passam por cima do semelhante, deixando aparecer quem somos de verdade.

E São Paulo, que precisaria da calma e da solidariedade nessa hora, abraça a barbárie do salve-se quem puder.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.